Embora as conversas com o realizador dinamarquês
Lars von Trier no último Festival de Cinema de Cannes se tenham
centrado muito nas polémicas afirmações que fez durante a conferência de imprensa, ainda houve tempo para discutir a fundo o filme que ele lá foi apresentar,
«Melancolia», uma reflexão sobre os estados depressivos mascarada de película sobre o fim do mundo. Um diálogo precioso, tendo em conta que cineasta decidiu meses depois deixar de dar entrevistas e fazer declarações públicas.
A base de «Melancolia»
«Melancolia» é baseado no facto da psicologia nos mostrar que numa situação real de catástrofe, uma pessoa melancólica ou que sofra de ansiedade seria muito mais racional porque, de alguma forma, já esteve lá, já passou por aquilo. Por isso é que a Justine (
Kirsten Dunst), que tem um passado turbulento, lida melhor com o fim do mundo que a irmã dela, a Claire (
Charlotte Gainsbourgh), que tem uma vida muito certinha e cheia de certezas.
O papel de Penélope Cruz
O projeto começou com a
Penélope Cruz no papel que acabou por ser da Kirsten Dunst. Só que ela teve de sair porque já tinha agendada a rodagem do último
«Piratas das Caraíbas». Acho que ela ainda tentou adiar a rodagem desse mas não conseguiu (risos). O problema é que eu teria de adiar tudo por um ano e não poderia fazer mais nada durante esse período. E por isso relativamente cedo, tivemos de decidir avançar com outra atriz. Além disso, outro problema é que o filme podia ficar velho demais, eu escrevo o argumento e é complicado ter de esperar um ano para rodar. Acho que ela aceitou bem.
A entrada em cena de Kirsten Dunst
Eu já a conhecia de outros filmes, mas o nome dela surgiu não só por ela estar disponível mas também porque há alguns anos atrás eu tive uma longa conversa com o
Paul Thomas Anderson e perguntei-lhe «que mulheres devo contactar na América para trabalhar?» e ele disse logo «a Kirsten», porque gostava muito dela. E como ela já tinha passado por algo semelhante à Justine, não sei se exatamente uma depressão, ela estava familiarizada com estas sensações e senti que podíamos discuti-las do meu ponto de vista e do dela. Estou muito contente com o que ela fez.
A troca de diretores de fotografia
Foi a primeira vez que trabalhei com o
Manuel Alberto Claro. Nos últimos filmes, o meu diretor de fotografia foi o
Anthony Dod Mantle e eu estava muito contente com ele. Só que trabalhámos em filmes em que ele não era verdadeiramente o diretor de fotografia, como
«Dogville» ou
«Manderlay», que eram mais teatro filmado. E por isso, no
«Anti-Cristo», eu senti que ele achava que era muito importante poder mostrar naquele filme todas as suas qualidades. Como eu estava tão em baixo, devido a uma depressão, aquilo que eu antes talvez lhe repetisse dez vezes agora só conseguia repetir duas. Ele passava a vida a dizer-me «quero dar-te prendas» ao que eu lhe respondia «não me dês prendas, dá-me só aquilo de que preciso e de que quero». E eu senti-me traído e ele sentiu-se traído e não foi bom. A minha crítica principal foi a de que a maioria do filme era bonito demais, ele devia ter rodado antes o «Melancolia». Mas para o «Anti-Cristo» eu gostaria de ter tido uma imagem muito mais árida e dura.
Desejo pelo fim do mundo
O romantismo alemão, especialmente o «Tristão e Isolda», tem a ver com a purificação através do sofrimento e da morte. Acho que a sensação ou o estado de melancolia pode ser por vezes muito tentador, porque tem dor mas pode ser uma dor doce, por isso até pode ser viciante. É como quando estamos apaixonados, em que podemos ter a tendência para ser completamente esmagados e ceder a essa tentação de querer manter aquele estado.
Em direção ao cinema «mainstream»?
Já me disseram que «Melancolia» poderia ser uma porta de entrada para mim no cinema «mainstream», mas isso não é algo que eu queira. Pelo contrário, até. Mas, antes da polémica toda, tive uma conversa com o Gilles Jacob [Presidente do Festival de Cannes] que me recordou de algo que ele disse e que me irritou muitíssimo. Ele disse que a primeira vez que eu fui a Cannes fui de blusão de cabedal, e que anos depois já fui de smoking, concluindo que «é isso que acontece com os rebeldes, eles regressam ao rebanho». Fiquei furioso. Discuti isso com ele e disse que a culpa de eu ter aquele smoking era dele e que também era culpa dele eu ir agora a seguir fazer um filme pornográfico, para ser um rebelde outra vez. Mesmo aos 55 anos continuo a ter esta ansiedade de rebeldia.
O filme seguinte: «The Nymphomanic»
Será uma discussão sobre o termo ninfomaníaca e um filme sobre a evolução erótica de uma mulher desde os 13 aos 50 anos, que se auto-intitula uma ninfomaníaca. Tivemos imensas discussões. E o filme é suposto ser um pouco como as obras do Marquês de Sade, que é parte sexo puro e duro mas com muita conversa e muita filosofia pelo meio. Sei que não deverá ser fácil encontrar uma audiência para ele. E planeio fazer uma versão «hardcore» porque como sou um cultural radical não me vejo a ser capaz de fazer um filme sobre erotismo sem mostrar um pénis. A minha ideia é fazer também uma versão «soft», que tenho mesmo de fazer senão não consigo financiamento.
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