O produtor e realizador António da Cunha Telles, um dos nomes indissociáveis do Cinema Novo português nos anos de 1960, morreu na quarta-feira aos 87 anos, disse à agência Lusa a filha, a produtora Pandora da Cunha Telles.

De acordo com a produtora, António da Cunha Telles morreu no Hospital Cuf Tejo, em Lisboa, e o funeral irá realizar-se no sábado também na capital.

Deixando praticamente concluído o ainda inédito filme "Cherchez la femme", o produtor e realizador de cinema António Cohen da Cunha Telles nasceu a 26 de fevereiro de 1935, no Funchal, filho de um advogado português e de uma cantora lírica dinamarquesa.

ANTÓNIO DA CUNHA TELLES A FESTEJAR 87 ANOS A 26 DE FEVEREIRO.

Foi no Funchal  que começou a fazer filmes ainda na adolescência: no documentário "Chamo-me António da Cunha Telles" (2011), de Álvaro Romão, o produtor lembra-se de revelar a película desses primeiros filmes na banheira, em casa, porque de outra forma demoraria três meses, se enviasse para revelação no continente.

Frequentou o curso de Medicina na Universidade de Lisboa, foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e, de 1956 a 1961, viveu em Paris para estudar realização no Institut d’Hautes Études Cinematographiques (IDHEC).

Regressando ao nosso país, dirigiu o jornal Imagens de Portugal, foi responsável pelos serviços de cinema da Direção-Geral do Ensino Primário, orientou cursos na Mocidade Portuguesa e foi operador de câmara para a RTP, tendo filmado a visita da rainha Isabel II a Portugal em 1957. Estreia-se na realização com o documentário "Os Transportes (1962), encomendado pela Direção-Geral do Ensino Primário.

A sua ligação ao cinema e à emergência da nova expressão remonta ao início da década de 1960. Foi no IDHEC que se cruzou com Paulo Rocha e é dele o primeiro filme que produz: "Os Verdes Anos" (1963), que representa uma estreia para a maioria dos técnicos e elenco envolvidos e também para o próprio Paulo Rocha enquanto realizador.

Continuou com a produção de filmes fundadores do Cinema Novo português com títulos como “Belarmino” (1964), de Fernando Lopes, e "Domingo à Tarde" (1966), de António Macedo, mas por falta de êxito comercial destes filmes do novo movimento, em 1967 abandona por curto período a produção e avança com o Cine-Almanaque, jornal de atualidades cinematográficas, que que são produzidas 12 números.

"O triste cinema que ainda existia, sem graça, sem piada, sem ideias, cinzentão, não queria que nós aparecêssemos, fechou-nos completamente as portas. (...) A minha primeira ideia era ter sido segundo assistente de um dos realizadores da época, para ver como funcionava. Isso foi-nos proibido. Aproximámo-nos entre nós e começámos a fazer filmes com equipas que inventámos", disse Cunha Telles, em 2014, numa entrevista na rádio pública Antena 2.

"Os Verdes Anos"

Em 2014, quando dedicou um ciclo de cinema a Cunha Telles, a Cinemateca Portuguesa lembrava que o produtor criou o curso universitário de Cinema Experimental, “que formou grande parte da geração de técnicos do Cinema Novo”, e teve também um papel importante na distribuição, a partir de 1973, com a Animatógrafo, considerada responsável por uma quase revolução no tipo de cinema visto em Portugal no início dos anos 70.

"O seu papel como distribuidor, alicerçado numa lógica cinéfila que cultivou na Cinemateca Francesa nos tempos de estudante, é igualmente notável, tendo sido responsável pela exibição em Portugal de filmes clássicos de cineastas como Sergei Eisenstein, Jean Renoir, Jean Vigo, Roberto Rossellini, bem como de cineastas então emergentes: Nagisa Oshima, Alain Tanner, Bernardo Bertolucci e Glauber Rocha", sublinhava a Cinemateca.

A estreia de António da Cunha Telles nas longas-metragens de ficção aconteceu em 1970 com “O Cerco”, protagonizado por Maria Cabral e apresentado naquele ano em Cannes.

"O Cerco"

Também participou no filme coletivo “As Armas e o Povo” (1975), que retrata o período vivido em Portugal entre o 25 de Abril e o 1 de maio de 1974.

Nas décadas seguintes, António da Cunha Telles realizaria menos de uma dezena de filmes, como “Meus Amigos” (1974).

ANTÓNIO DA CUNHA TELLES SOBRE "MEUS AMIGOS".

Da sua filmografia como realizador destacam-se ainda "Continuar a Viver" (1975), o documentário “Continuar a Viver ou os Índios da Meia Praia” (1976), "Vidas" (1983), “Pandora” (1993) e “Kiss Me” (2004).

"Kiss Me" (2004)

No final dos anos 1970, a atividade da Animatógrafo diminuiu bastante e Cunha Telles tornou-se administrador do Instituto Português de Cinema e da Tóbis Portuguesa.

Em 1983, regressou à produção, numa lista de créditos com mais de 50 títulos, incluindo "O Crime da Aldeia Velha" (1964), de Manuel Guimarães, “O Bobo” (1982), de José Álvaro de Morais, "Balada da Praia dos Cães" (1986), de José Fonseca e Costa, e "Os Flagelados do Vento Leste" (1986-1987), de António Faria, “O Fio do Horizonte” (1993), de Fernando Lopes, “Aqui na Terra” (1993), de João Botelho, e “Terra Sonâmbula” (2006), de Teresa Prata.

Foi ainda o produtor associado não creditado de "Belle Epoque - A Bela Época" (1992), de Fernando Trueba, vencedor do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro para a Espanha.

Ainda neste papel ficam filmes como “Angústia” (1964), de François Truffaut, “A Filha de D’Artagnan” (1994), de Bertrand Tavernier, e “O Barbeiro da Sibéria” (1998), de Nikita Mikhalkov, todos parcialmente rodados em Portugal.

Também produziu telefilmes, em particular para a SIC, nomeadamente “Monsanto” (2000), de Ruy Guerra, “Mustang” (2000), de Leonel Vieira, e “Facas e Anjos” (2000), de Eduardo Guedes.

"Monsanto" e "Kiss Me" tinham argumentos de Vicente Alves do Ó, a quem produziu como realizador a primeira curta-metragem, "Entre o Desejo e o Destino" (2005), e a primeira longa, "Quinze Pontos na Alma" (2011).

O realizador escreveu nas redes sociais após a morte do produtor: "Morreu o António. Morreu o pai do cinema novo português. Morreu o pai da minha amiga e produtora Pandora Da Cunha Telles . Morreu o homem que um dia me foi buscar a Sines e trouxe para Lisboa, dizendo que o meu futuro era aqui, a contar histórias e a fazer filmes. O António é uma daquelas personagens maior que a vida. Não cabia no corpo, nem há narrativa que consiga congregar todas as suas luas. Agradeço-lhe muito. Deu-me espaço, tempo, fé, cinema, esperança, conhecimento e a filha, que hoje é um dos pilares da minha vida. Como amiga e como produtora. Obrigado, António. Por tanto e por tudo. Uma viagem tranquila".

Apesar dessa multiplicação de funções no cinema, na produção, distribuição e formação, e em cargos diretivos, na administração do antigo Instituto Português de Cinema e na Tobis, Cunha Telles admitia em 2017: “No meu íntimo sou mais realizador do que produtor”.

António da Cunha Telles, membro honorário da Academia Portuguesa de Cinema, foi agraciado em 2018 pela Presidência da República com o grau de Grande-oficial da Ordem do Infante D. Henrique.