A caminho dos
Óscares 2024
O espetáculo de "A Sociedade da Neve" venceu o intimismo de “20.000 Espécies de Abelhas”.
Com 12 prémios em 13 nomeações, o filme de Juan Antonio Bayona foi o arrasador vencedor da 38.ª cerimónia dos Goya, os prémios espanhóis de cinema, entregues no sábado à noite em Valladolid.
Só uma categoria escapou, a de Melhor Argumento Adaptado: na história dos “Óscares de Espanha”, passa a ser o terceiro filme mais premiado, atrás dos 14 prémios de “Mar Adentro” (2004), de Alejandro Amenábar, e os 13 de “"Ai, Carmela" (1990), de Carlos Saura.
Com duas horas e meia de duração, a super produção ao estilo 'hollywoodiano' financiada pela Netflix, um desafio que envolveu 300 pessoas e demorou 10 anos a produzir e estrear, também nomeada para o Óscar de Melhor Filme Internacional e Caracterização, recria a famosa história verídica que envolveu os jogadores de uma equipa de râguebi do Uruguai que sobreviveram à queda do seu avião nos Andes em 1972 depois de mais de dois meses de fome e frio na Cordilheira.
Não houve prémios para “Alma Viva” e “Mataram o Pianista”, filmes com produção portuguesa, mas houve “honras” nacionais com a presença de Salvador Sobral, que interpretou com Silvia Pérez Cruz uma versão do tema “Procuro olvidarte”, de Manuel Alejandro, para acompanhar a homenagem “In memoriam” aos profissionais do cinema espanhol que desapareceram desde a última cerimónia , que conquistou a elite no Feira de Valladolid e rapidamente muito elogiada nas redes sociais.
“Salvador Sobral e Sílvia Pérez, vozes extremamente sensíveis, dolorosas, íntimas. Começaram a cantar e abriu-se um parêntesis nas nossas vidas (…) Acompanhados por uma violoncelista, foi a canção mais emocionante da gala”, elogiou o El País.
Após a publicação há duas semanas de um artigo em que três mulheres acusavam de violência sexual o realizador Carlos Vermut – Concha de Ouro no Festival de San Sebastián em 2014 – e também as queixas contra o menos conhecido Armando Ravelo, o tema dos abusos marcou as intervenções de muitos convidados na passadeira vermelha e dos apresentadores, a atriz Ana Belén e realizadores, argumentistas e produtores Javier Ambrossi e Javier Calvo (conhecidos por “Los Javis”), que, aludindo ao silêncio, declararam “aqui, no cinema, também acabou”.
O primeiro prémio da noite foi para José Coronado como Melhor Ator Secundário por “Fechar os Olhos”, a única distinção para o filme de Víctor Erice, que regressou à realização aos 83 anos após uma pausa de três décadas.
O veterano de 66 anos descreveu o segundo Goya da carreira em cinco nomeações como 'combustível para continuar a trabalhar com humildade e sem queixar-me de nada: sou um privilegiado', antes de deixar o público a rir com as palavras de simpatia para os outros nomeados: 'Vocês são mais jovens e têm mais tempo'.
O Goya de Melhor Canção para 'Yo solo quiero amor', de Rigoberta Bandini, do filme “Te estoy amando locamente” antecedeu a chegada avassaladora de “A Sociedade da Neve”, que arrecadou dez prémios de seguida: Guarda-Roupa, Efeitos Especiais, Caracterização, Ator Revelação (o argentino Matías Recalt), Montagem, Fotografia, Som, Direção Artística, Direção de Produção e Banda Sonora.
Em pouco mais de uma hora, o filme não só cumpriu as previsões de que dominaria as categorias técnicas, como surpreendeu com os prémios inesperados para Ator Revelação e Banda Sonora, esta da autoria do norte-americano Michael Giacchino.
Só a seguir se voltaram a ouvir outros títulos a ganhar, como “Robot Dreams” como Melhor Filme de Animação, deixando pelo caminho “Mataram o Pianista”, de Fernando Trueba e Javier Mariscal, com coprodução portuguesa pela Animanostra, apoio financeiro do Instituto do Cinema e do Audiovisual e participação da RTP (mais tarde, a animação recebeu outro prémio, o do Argumento Adaptado, da autoria do realizador Pablo Berger, que já ganhara dois Goya com a sua versão de “Branca de Neve”, de 2012).
Por esta altura, “20.000 Espécies de Abelhas”, que aborda em tom intimista a questão da identidade de género na infância e liderava a corrida aos Goya com 15 nomeações, conseguiu o primeiro prémio, o de estreia na realização para a cineasta basca Estibaliz Urresola, uma das poucas a usar o discurso para se referir tanto à violência sexual como à guerra em Gaza. As outras distinções chegariam com Ane Gabarain como Melhor Atriz Secundária e o Argumento Original, também de Urresola.
A Melhor Atriz Revelação para a bailarina e coreógrafa Janet Novás, a fazer a estreia no cinema aos 41 anos com “O Corno do Centeio”, filme com co-produção portuguesa, antecedeu, quando já passavam duas horas e meia de cerimónia, o anúncio do Goya de Melhor Filme Ibero-americano para o documentário “La memoria infinita” (Chile), de Maite Alberdi, uma história de amor marcada pela doença de Alzheimer, categoria onde concorria o português “Alma Viva”, da realizadora luso-francesa Cristèle Alves Meira.
Nomeado para cinco Óscares, “Anatomía de uma Queda” (França), ganhou mais um prémio para juntar às dezenas da temporada, o Goya de Melhor Filme Europeu.
Em contagem decrescente para o fim da cerimónia, David Verdaguer foi eleito o Melhor Ator por “Saben aquell”, o único prémio em 11 nomeações para o filme de David Trueba sobre a vida do famoso comediante espanhol Eugenio.
Seguiu-se Malena Alterio como a Melhor Atriz por “Que nadie duerma”, um filme de Antonio Méndez Esparza descrito como “atípico” e “inclassificável” no cinema espanhol sobre uma mulher que perde o emprego como informático e decide assumir o controlo de sua vida tornando-se taxista, ao mesmo tempo que planeia conhecer um vizinho misterioso por quem ficou obcecada e apaixonada.
O final da cerimónia traria os dois prémios mais importantes para “A Sociedade da Neve”, Melhor Realização e Melhor Filme, com Juan Antonio Bayona finalmente a quebrar a sua “maldição”, já que, sem nunca ganhar Melhor Filme, “O Orfanato” chegou às sete estatuetas em 2007, enquanto “Sete Minutos Depois da Meia-Noite” teve nove em 2016.
“A quatro mil metros de altitude, à frente dos túmulos dos falecidos, pedi permissão às famílias para contar esta história. Espero ter estado à altura disso. […] Durante 10 anos, disseram-nos que um filme com esta ambição não poderia ser feito em espanhol”, disse o realizador ao receber o penúltimo prémio, agradecendo à Netflix e fazendo a dedicatória ao público, recordando o sucesso das visualizações na plataforma e os espectadores nas salas “apesar de não se ter chegado a acordo com os dois maiores distribuidores do cinema espanhol”.
No discurso final acrescentaria: “Quando vais para fora com um filme em espanhol sentes que estás a entrar pela porta das traseiras e quando estou aqui parece que sou de outro campeonato. Mas a minha casa é o cinema espanhol, estou muito orgulho de pertencer a esta família. E penso nestas pessoas que esteve na montanha, abandonadas e dada como mortas, no meio do nada, e puderam sair porque trabalharam juntas e colaboraram para fazer o impossível. E essa é a ideia que sempre tive da nossa família do cinema espanhol. Que juntos, podemos conseguir o que queremos”.
Entre 28 categorias, dois prémios de carreira (para a atriz norte-americana Sigourney Weaver e o diretor de fotografia e restaurador de cinema Juan Mariné,de 103 anos), atuações musicais, a homenagem aos 25 anos de “Tudo Sobre a Minha Mãe” que juntou à volta de um sofá Pedro Almodóvar e as atrizes Penélope Cruz, Cecilia Roth, Marisa Paredes e Antonia San Juan, e um discurso tanto do presidente como da vice-presidente da Academia Espanhola de Cinema, a cerimónia chegou às três horas e meia: longe das históricas quatro horas, mas o suficiente para ojornal El País lamentar: 'Os intermináveis debates sobre como cortar os Goya continuarão mais um ano. E sem solução'.
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