Uma sessão de "O Último Tango em Paris" (1972), filme que inclui uma cena de violação filmada sem o consentimento da atriz Maria Schneider, foi cancelada pela Cinemateca Francesa (Cinémathèque française) por causa dos protestos de associações feministas.

A instituição tomou esta decisão “numa preocupação de apaziguar os ânimos e tendo em conta os riscos de segurança incorridos”, disse em comunicado, poucos dias após o início do julgamento do realizador Christophe Ruggia por acusações de agressão sexual à atriz Adèle Haenel quando esta tinha entre 12 e 14 anos.

E justificou: “As pessoas violentas estavam a começar a revelar-se e manter esta projeção precedida de debate tornou-se um risco completamente desproporcional. Uma pena”.

Respeitar Maria Schneider

A Cinemateca já tinha cancelado no final de 2017 uma retrospetiva dedicada ao cineasta Jean-Claude Brisseau, condenado em 2005 por assédio sexual.

"O Último Tango em Paris" era para ser exibido no domingo, 15 de dezembro, às 20h00, como parte de uma retrospetiva dedicada ao ator norte-americano Marlon Brando. Uma escolha fortemente denunciada pela atriz Judith Godrèche, figura do movimento #MeToo em França, que lamentou a falta de contextualização do filme e de respeito para com a atriz Maria Schneider, falecida em 2011, após uma vida traumática.

“É hora de acordar, querida Cinemateca e devolver às atrizes de 19 anos (a idade de Maria Schneider na época da rodagem) a sua humanidade, comportando-se com humanismo”, escreveu ela no Instagram.

O filme dirigido por Bernardo Bertolucci evoca a relação entre um viúvo americano de passagem por Paris e uma mulher muito jovem. Esta sessão fechada, tanto sexual como mórbida, atinge o seu clímax numa cena de sodomia não consensual.

Esta cena, que rendeu ao filme a classificação de pornográfico e a ira do Vaticano, entrou para a história do cinema antes de simbolizar anos mais tarde a violência sexual na Sétima Arte. Porque, embora simulada, a cena foi imposta à atriz, sem que soubesse de nada.

Algo que denunciaram atrizes de Hollywood como Jessica Chastain durante o surgimento do movimento #MeToo em 2017.

“Para todos aqueles que gostaram do filme, vocês estão a ver uma miúda de 19 anos a ser violada por um homem de 48. O realizador planeou o ataque. Isso deixa-me doente.", disse a atriz na época.

A partir da década de 1970, Maria Schneider manteve silêncio sobre essa rodagem traumática, evocando uma dupla violação por parte do ator e do realizador, que decidiram a cena sem falar com ela. Ela quase não será ouvida durante a produção, como mostra "Maria Schneider", o filme biográfico de Jessica Palud já visto nas salas francesas e que está previsto chegar às portuguesas em maio de 2025.

Na rede social X (antigo Twitter), o movimento coletivo 50/50, que luta pela paridade no cinema, também apelou à Cinemateca para uma “mediação atenciosa e respeitosa das palavras da vítima, a atriz Maria Schneider” para acompanhar esta exibição de domingo.

Por seu lado, o sindicato SFA-CGT lembrou que “filmar e transmitir violações continua a ser condenável”.

“Hoje, nós sabemos. Não podemos fingir que não percebemos e não vemos o significado desta cena de violação”, escreveu o sindicato, garantindo ao mesmo tempo que respeita a “liberdade de expressão”.

A Cinemateca tinha prometido na sexta-feira “tempo para discussão com o público” antes da exibição, “sobre as questões” que o filme levantava.

“Este filme terá conseguido causar escândalo duas vezes, mais de 50 anos depois”, estima Frédéric Bonnaud, lembrando que foi exibido “sem problemas” na Cinemateca em 2017 “em homenagem ao seu diretor de fotografia”.