Num dos projetos, o realizador aborda a ocupação estatal de terrenos baldios, nos anos de 1940, "uma espoliação" pela ditadura de Oliveira Salazar, que também conduziu à emigração; noutro, parte do tema da passagem da fronteira, nos anos de 1960, para retratar a emigração "no sentido humano".

"A partir da fronteira, quero explicar um pouco o que é a emigração. O que é que as pessoas sentem, o facto de deixarem a terra, o facto de atravessarem a fronteira e chegarem a França, onde ficam totalmente estrangeiras, sem saberem falar nem poder defender-se", descreveu José Vieira à agência Lusa.

Em termos formais, o documentário vai ter como fio condutor as vozes de dezenas de portugueses que "passaram a fronteira", nos anos 60 e cujas memórias vão acompanhar imagens de arquivo, fotografias e reportagens.

O objetivo de "misturar todos os relatos do que as pessoas sentiram", é "transmitir uma história coletiva como se fosse uma só voz a falar" e surge, também, como uma resposta à própria busca interior de José Vieira que chegou a França aos sete anos, em 1965, e que viveu até aos 12 anos num 'bidonville', nos arredores de Paris.

"Tinha sete anos quando passei a fronteira e não me lembro de nada. O que eu quero fazer a partir desse esquecimento, é escrever uma memória dessa fronteira, sem ter nenhuma memória, e ir ter com as pessoas para elas me contarem como é que passaram por lá, o que sentiram naquele momento, o que sentiram antes, o que sentiram depois", explicou à Lusa.

Como em "Souvenirs d'un Futur Radieux" (2014) e em "A Ilha dos Ausentes" (2016), José Vieira parte da história da emigração portuguesa para abordar as atuais migrações para a Europa.

"Para mim, hoje já não faz sentido continuar a fazer filmes sobre a emigração unicamente portuguesa, mas abrir sistematicamente ao que se está a passar hoje e em que é que o facto de eu trabalhar sobre a emigração portuguesa me faz compreender o que se está a passar [na atualidade]", contou o realizador de "O País Aonde Nunca se Regressa" (2005).

Recordando que, nos anos 60, houve "pessoas que fugiram para não ir para a prisão, pessoas que fugiram para não ir para a guerra, pessoas que fugiram para fugir da miséria simplesmente", o cineasta considerou que "o que se está a passar hoje é exatamente a mesma coisa", mas com migrantes vindos de outras paragens.

"O que me interessa é abrir a nossa memória sobre o que se está a passar hoje, porque a memória não é um monumento, não é uma coisa fechada e o que a gente passou [repete-se], de uma maneira ou de outra", defendeu.

José Vieira sentiu a necessidade de fazer este projeto, a partir de 2015, face ao êxodo de pessoas que fugiam da guerra na Síria e à "maneira como eram tratadas para passar as fronteiras", disse à Lusa.

"Se vamos a ver, a maior parte das pessoas que chegam à Europa, hoje, são pessoas que fogem a ditaduras. Do que é que a gente fugia senão a uma ditadura?", questionou o realizador.

José Vieira avançou que, se hoje há "milhares de pessoas a chegar à Europa", é "preciso saber que a maior emigração clandestina que houve para a França [foi] a emigração portuguesa".

Entre 1957 e 1974, emigraram para França cerca de 900 mil portugueses e, de acordo com o cineasta, calcula-se que cerca de dois terços o fizeram de forma clandestina, ou seja, "se não tivesse havido emigração clandestina, hoje, os portugueses em França seriam cerca de 300 mil".

José Vieira está também a preparar outro documentário sobre a ocupação estatal de terrenos baldios nos anos 40, "uma espoliação total de aldeias" portuguesas, que obrigou muitas pessoas a emigrar.

"Nas aldeias, os mais pobres que viviam do trabalho, dos rebanhos, que precisavam de lenha ou carvão, foram obrigados a emigrar porque não podiam viver sem os baldios. É uma história de espoliação pelo Estado, em Portugal, nos anos 40", avançou à Lusa.

A ideia surgiu durante a rodagem do filme "O Pão que o Diabo Amassou" (2012), quando um habitante da aldeia de Adsamo, na região de Viseu, começou a contar o que eram os baldios e disse que "o Estado tinha tirado os baldios ao povo e que não puderam reagir, porque no Estado de Salazar, ‘era um pouco complicado’".

Apesar da dificuldade em obter financiamentos, José Vieira acredita que os dois documentários possam estar concluídos e prontos para exibição no próximo ano.

Tudo o que se passa à frente e atrás das câmaras!

Receba o melhor do SAPO Mag, semanalmente, no seu email.

Os temas quentes do cinema, da TV e da música!

Ative as notificações do SAPO Mag.

O que está a dar na TV, no cinema e na música!

Siga o SAPO nas redes sociais. Use a #SAPOmag nas suas publicações.