Existe uma velha piada cinematográfica, possivelmente discriminatória, que foi diversas readaptada pelos irmãos Wayan durante as paródias “Scary Movie”, de que a ausência de personagens negras no género de terror deve-se sobretudo à sua superstição, sendo as primeiras a "fugir" após o primeiro contacto com eventos sobrenaturais.

A verdade é que o simbolismo desse "foge" encontrou lugar nos gritos desesperados de LaKeith Stanfield a Daniel Kaluuya na primeira longa-metragem de Jordan Peele. Sim, o "Get out, get out" em "Foge". E o seu sucesso levou a todo um repensar do conceito de cinema de terror negro que caiu que nem ginjas em muito dos medias "mainstream". Muito mais quando recebeu louros e foi agraciado com nomeações aos Óscares, incluindo o de Melhor Filme (e Peele arrecadou a estatueta pelo argumento original).

Foge (2017)

Porém, não devemos cair em erro, este dito "cinema de terror negro" já nos acompanha há gerações, mesmo sob um tom marginalizado e financeiramente desprezado.

Se George A. Romero quebrou o tabu em colocar um negro como um dos "heróis" no seu "A Noite dos Mortos Vivos" (1968), anteriormente a isto eram vistos quase sempre como personagens secundarizadas. E foi com a explosão do chamado “blackexploitation” que o género de terror começou a agregar essas histórias negligenciadas.

Passando por variações negras de Frankenstein ou Drácula (carinhosamente chamado de Blackula), saímos da euforia dos 70 e seguimos às décadas seguintes com alguns pontuais ensaios desse terror, maioritariamente incentivado pelo debate racial nos EUA (ao leitor é favor (re)descobrir "Tales from the Hood", de Rusty Cundieff).

Mas foi "Foge", que além de consagrar Jordan Peele como um futuro mestre do terror (realmente estamos com falta disso na nossa atualidade), transportou o conceito para as grandes audiências. Sai-se do oculto, viram-se sucessos de bilheteira.

"Nós" não é exceção, porque é fácil de encontrar nele todos os elementos que fazem este género bem sucedido aos demais espectadores. Aliás, é no seu facilitismo que Jordan Peele, demasiado confiante, mete os pés pelas mãos.

Ao contrário de "Foge", que era um filme apto para a dupla interpretação, ora uma "sátira" ao racismo norte-americano, invocando ocasionalmente a memória do esclavagismo, ora uma crítica aos movimentos politicamente corretos e a chamada "culpa branca", em "Nós" o que nos deparamos é com um recital de referências de um terror entranhado... além de ser demasiado "explicadinho".

Tudo apontava que este conto de “doppelgangers” (duplos) não teria medo do seu lado propriamente B (assim como John Carpenter e os seus diversos filmes), mas Jordan Peele quer fazer cinema sério e implicando com isto a vontade de seguir uma indústria de "jump scares" e de "plot twists" (alguns deles sem sentido algum para a narrativa).

Carence inteligência na forma como conecta os diversos exercícios que vai expondo, desde a "home invasion" promissora (com ares e tendências psicológicas de Michael Haneke e o seu primeiro “Funny Games - Brincadeiras Perigosas”, de 1997) até ao concerto apocalíptico que constantemente homenageia Romero. Só que a jornada de transição faz-se pela previsibilidade, pela planificação "de caras" e pelo constantemente medo de "sujar as mãos" e de ir além do perfeccionismo estético ou do terror de "primeira liga".

Tristemente, Jordan Peele faz um filme industrial no sentido mais prostituto possível. Mas até mesmo nessa industrialidade (esperemos que seja só uma fase), encontramos em "Nós" um palco performativo exclusivo para Lupita Nyong'o (o seu melhor trabalho desde sempre, para lá de "12 Anos Escravo", que lhe valeu um Óscar) e um senso de afirmação de um futuro autor (tendo em conta muitos dos seus gestos, aponta-se como um futuro Hitchcock).

Irá ser pintado (e já) como uma obra-prima do género tendo em conta o niilismo que muita desta crítica tenta assumir. Enquanto isso, “Nós” não ficamos convencidos...

"Nós": nos cinemas a 21 de março.

Crítica: Hugo Gomes

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