Oppenheimer
A HISTÓRIA: A história do abissal paradoxo do enigmático homem que tem de arriscar destruir o mundo para o salvar.
"Oppenheimer": nos cinemas a partir de 20 de julho.
Crítica: Francisco Quintas
“Vejo o Oppenheimer como a pessoa mais importante que alguma vez viveu. A sua história é uma das maiores imagináveis (…) Ao soltar o poder atómico, ele deu-nos o poder de nos destruirmos que nunca tivemos, e isso altera a equação humana.”
Christopher Nolan em entrevista à CBS News
Em sucessivas retrospetivas históricas a cabo da sociedade moderna, é frequente que as apreciações dos cidadãos comuns e até de especialistas surjam embrulhadas num novelo de espanto e indignação. Afinal, quando ocupamos o assento privilegiado do presente, que fornece o conhecimento de que o passado não dispunha, é bastante fácil dissecá-lo com altivez e julgamento. Ainda mais quando se salienta repetições de atos de ignorância e maldade.
Em defesa do homem do respetivo tempo, é também fácil compreender que o progresso é um fenómeno demorado e limitado à ideologia que o concerne. Por muito esclarecida e atenta que seja uma civilização, os séculos vindouros mostrar-se-ão mais capazes de redigir uma avaliação moral fidedigna sobre os danos cometidos na atualidade. Isto no cenário improvável de não tropeçarem nos mesmos.
Contudo, no que ao portefólio de J. Robert Oppenheimer diz respeito, mantém-se a surpresa. Como foi possível, para os órgãos da democracia e para o “pai da bomba atómica”, subestimar as inevitáveis réplicas da ciência nuclear? Como foi que o cientista perdeu as mãos da sua "filha”, apoderada por políticos, militares e colegas de profissão?
Digamos que a segunda metade de “Oppenheimer”, a metade “objetiva”, um drama de tribunal filmado a preto-e-branco, contado pela perspetiva de Lewis Strauss, o almirante interpretado por Robert Downey Jr., é uma tentativa de averiguar responsabilidades e reconstituir o perfil inconstitucional da paranoia anticomunista dos EUA. Derrotada a ameaça nazi e avizinhando-se a nuvem da Guerra Fria, o controlo do arsenal nuclear requeria um ou diversos bodes expiatórios, uma velha demagogia publicitária que transforma heróis em vilões.
No entanto, servindo-se da biografia “American Prometheus”, escrita por Kai Bird e Martin J. Sherwin, o derradeiro objetivo da história contada por Christopher Nolan, evidente na primeira metade, filmada a cores, foi elevar uma jornada individual, quiçá minimalista, de um estudante desastrado, um génio em bruto, a um enredo de épicos contornos, excessivos para qualquer envolvido.
De todas as vezes em que o realizador recorreu à subjetividade da personagem principal, “Oppenheimer” é, sem dúvida, a expedição mais emotiva. A construção do protagonista é meticulosa no papel, é certo, mas vale a pena adiantar que Cillian Murphy exibe um trabalho de ator monumental, sem precedentes na sua carreira, superlativo quando rodeado de estímulos fílmicos.
Na estreia de Nolan no género da biografia histórica, não fosse esta também uma profunda “tour de force”, existe a urgência em direcionar todas as cenas, todos os subtextos, à personagem central, ameaçando o desenvolvimento dos restantes envolvidos. Felizmente, sobra rigor com as personagens secundárias, mais ou menos essenciais, sendo que, igualmente, a seleção versátil do elenco garante uma forte fundação psicológica: Emily Blunt, Matt Damon, Florence Pugh, Josh Hartnett, Casey Affleck, Rami Malek, Kenneth Branagh, Benny Safdie...
Mais uma vez, a fundação cinematográfica foi entregue a alguns dos melhores profissionais da respetiva área. Hoyte van Hoytema na fotografia, Jennifer Lame na montagem e Ludwig Göransson na banda sonora: a película IMAX de 70 mm, as camadas sobrepostas da linha cronológica, a agressividade melódica; cada peça engrena uma enorme combustão audiovisual e sensorial, tão hábil a desfazer a clausura sentimental como a abalroar uma inteira sala de cinema.
Perante a atarefada premissa, seria de esperar que o argumento de Nolan se debruçasse sobre conceitos científicos complexos, fugidios à compreensão do espetador casual. É sabida a sua capacidade para contextualizar diálogos elucidativos, nomeadamente em “Inception” (2010) – a exposição é necessária. No entanto, também é conhecida uma sede quase incontrolável em abafar linhas de exposição fundamentais com as progressões da banda sonora.
Na ambição de confundir a música com a diegese, o problema conheceu um cúmulo insustentável em “Tenet” (2020). É discutível que esse defeito persista em “Oppenheimer”, mas é justo reconhecer, agora, um equilíbrio entre as duas abordagens criativas: as explosões musicais foram dosadas e o eclético elenco corresponde às exigentes sequências de bate-papo académico, político e jurídico e aos momentos de aguda subtileza, onde os pensamentos do protagonista viajam por visões de harmonia e destruição.
Ainda que a conturbada cabeça deste protagonista tenha cessado num pessimismo dormente, resiste a questão: terá o realizador procurado uma fenda de esperança, um raio de luz benevolente, disperso neste lamaçal de guerrilha e oportunismo institucional?
Se foi prioritário conduzir um estudo de personagem e algum comentário sobre o legado de J. Robert Oppenheimer, mais do que romper os horizontes da cine-biografia, a que se chega? Como se propõe que sejam recordadas a pessoa e a obra? Benfeitor ou malfeitor? Vítima ou carrasco? David ou Golias? Um homem além do Tempo, dirão alguns. Um homem apenas, dirão outros.
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