Se o álbum mais recente dos Depeche Mode, "Memento Mori" (2023), já tinha sido prova de vida para muitos fãs - e para a grande maioria da crítica, que o aplaudiu mais do que a qualquer outro do grupo britânico em décadas -, a digressão que o apresenta atesta definitivamente a fase de vitalidade não só criativa, como performativa. O que é quase um milagre, tendo em conta que a morte do teclista Andy Fletcher, em 2022, abalou como nenhum outro acontecimento em muitos anos a estabilidade da agora dupla de Dave Gahan e Martin Gore.
Essa perda, que teve impacto direto no título e nos ambientes do disco, também obrigou os músicos a "viver cada dia ao máximo", como explicaram em entrevistas, e talvez por isso esta digressão tenha já uma vida longa: iniciada em março do ano passado, nos EUA, conta com mais de 100 datas e é das mais ambiciosas de sempre dos Depeche Mode, terminando em abril na Alemanha.
Não admira, por isso, que o regresso a Lisboa (o primeiro desde o festival NOS Alive de 2017, no Passeio Marítimo de Algés) tenha comprovado uma máquina tão bem oleada em palco. Atuando em formato quarteto - com Christian Eigner na bateria e Peter Gordeno nos teclados - perante 20 mil espectadores ao longo de duas horas e dez minutos, a banda esteve mais uma vez à altura do seu legado (dos mais icónicos e influentes da pop eletrónica) numa noite que juntou ao desfile invejável de clássicos algumas novidades e uma ou outra escolha menos óbvia no alinhamento.
"Memento Mori" pode ter sido o pretexto para a digressão, mas dele ouviram-se apenas quatro canções (como se tornou regra, aliás, nos concertos dos últimos meses). Ainda assim, o novo disco fez as honras do arranque, com o negro e atmosférico "My Cosmos Is Mine", que é também o seu tema de abertura, e logo a seguir com "Wagging Tongue", acesso synth-pop mais luminoso e dançável.
Nem foi preciso os Depeche Mode jogarem trunfos logo a abrir para se tornar evidente que o público já estava mais do que rendido, ou não fosse esta uma relação de fé e devoção. Mas a postura irrequieta e instigadora de Dave Gahan terá contribuído muito para esse efeito. Afinal, o mestre de cerimónias do grupo é dos maiores animais de palco da sua geração e a sua forma vocal continua tão desenvolta como a física: por mais exigente e meticulosa que seja a alquimia instrumental, dificilmente imaginaríamos as canções da banda sem a voz possante do seu vocalista. A não ser, claro, naquelas em que Gore, o principal compositor, se torna intérprete.
Foi o que aconteceu em "Strangelove" e "Somebody", quando Gahan lhe cedeu o protagonismo num dos episódios mais singulares da noite. Se a primeira canção é um clássico praticamente obrigatório no alinhamento, a segunda, mais discreta, foi a única retirada de "Some Great Reward" (1984), e de forma algo surpreendente - até porque o quarto álbum do grupo inclui temas mais populares, como "People Are People" e "Master and Servant". Apresentadas em versões despidas, apenas com a voz de Gore e o piano de Gordeno, relembraram que os Depeche Mode têm não um, mais dois vocalistas excecionais, e ofereceram o intimismo possível (e arrepiante) na maior sala de espetáculos do país.
O próprio Gahan reconheceu a "bela voz angelical" do colega num momento especialmente aplaudido (a convocar uma profusão de telemóveis em riste, à imagem dos isqueiros de outra era), dos mais bonitos de um concerto que poderia ter proporcionado outras surpresas destas. Por outro lado, isso talvez fosse pedir demais a um espetáculo ao qual muitos compareceram com a expectativa de uma sucessão de êxitos. E foi sobretudo o que tiveram, servidos com um profissionalismo e eficácia sem reparos (ou quase, mas já lá vamos).
Na primeira hora, só a sequência de "Walking in My Shoes", "It's No Good", "Policy of Truth", "In Your Room" e "Everything Counts" (um luxo, portanto) já teria valido a noite para boa parte dos espectadores. "Before We Drown", envolvente canção de descompressão com vista para o mar (no ecrã ao fundo do palco junto do qual se destacava um M gigante e iluminado), desviou atenções para o novo álbum. Mais reconhecido, "Ghosts Again", o single que antecipou "Memento Mori", consolidou-se como maior hino dos Depeche Mode nascido nos últimos anos - não teve reações tão efusivas como o material "best of", é certo, mas está bem encaminhado.
Voltando aos clássicos, "Behind the Wheel" foi dedicada a Andy Fletcher, "Just Can't Get Enough" candidatou-se a acesso mais contagiante - terminando com Gahan em modo maestro, esbracejando e comandando a multidão - e "Never Let Me Down Again" foi igual a si própria na moldura humana que despertou - ou seja, com uma onda de milhares de braços, cenário expectável mas sempre impressionante (para não dizer comovente).
Clássico dos clássicos, "Enjoy the Silence" só não brilhou mais porque foi ligeiramente traído por um remate que lhe injetou novidade. Ou nem tanto, já que foi produção aparentada do dubstep de um Skrillex em 2015 e - uma tentativa de modernização desnecessária num tema que nasceu perfeito e intemporal. Desvio ainda maior face à versão gravada, "A Pain That I'm Used To" surgiu num registo acelerado e sincopado (partindo da remistura de Jacques Lu Cont) sem sair propriamente a ganhar com a troca. Igualmente questionável foi o protagonismo dado à bateria em várias canções, embora esse reforço musculado não tenha assentado mal às mais dinâmicas.
Melhor foi a depuração de "Waiting for the Night", cantada a duas vozes no arranque do encore. Com os dois membros da banda em plena sintonia (cenário para alguns impensável noutros tempos), voltou a sublinhar, depois de "Strangelove" e "Somebody", que as canções dos Depeche Mode são grandes mesmo sem sintetizadores (ou guitarras). Já "Personal Jesus" não prescindiu dos instrumentos para fechar com o estrondo que se esperava. "Reach out, touch faith"? Com certeza. Noites assim dão-nos fé renovada naquilo que um concerto de veteranos pode ser.
Alinhamento:
My Cosmos Is Mine
Wagging Tongue
Walking in My Shoes
It's No Good
Policy of Truth
In Your Room
Everything Counts
Precious
Before We Drown
Strangelove
Somebody
Ghosts Again
I Feel You
A Pain That I'm Used To
Behind the Wheel
Black Celebration
Stripped
Enjoy the Silence
Encore:
Waiting for the Night
Just Can't Get Enough
Never Let Me Down Again
Personal Jesus
A primeira parte do concerto ficou a cargo da australiana Suzie Stapleton
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