Ainda com o recinto a menos de meio gás, os poucos que foram chegando dividiram-se entre as toalhas axadrezadas pousadas pelo relvado, a aproveitar o sol que a chuva tanto foi ameaçando importunar, e a frente do Palco Primavera, onde coube aos mais de muitos StopEstra! abrirem a programação do festival. Nascidos da parceria entre o Serviço Educativo da Casa da Música e o Movimento de Músicos do Stop, sob a batuta do maestro Tim Steiner (da qual nem o público pôde escapar), os cerca de 100 músico confluem em palco a essência de projetos díspares, resultando numa amálgama de géneros, sons e ruído, alguma algazarra e, sobretudo, muito boa disposição.

Finda a atuação da “maior banda de rock do mundo” - que apesar de mal caber em palco soube despertar atenções através da paleta de géneros mestiça, visualmente acentuada por uma policromia de camisas floridas e perucas de cores vibrantes -, seguiu-se a vez de Bigott, primeiro elemento do intercâmbio entre Portugal e Espanha, estrear-se no Primavera do Porto.

De Saragoça, no inglês peculiar de que faz bandeira, Borja Laudó trouxe-nos histórias inusitadas, envoltas num folk mais psicadélico que não tardou em metamorfosear-se em pop dançável, como em Cannibal Dinner, cartão-de-visita do mais recente “The Orinal Soundtrack”. E se a audiência não se fez rogada aos primeiros convites para um bailinho de fim-da-tarde frente ao Palco Optimus, Laudó não se deixou ficar para trás, executor de movimentos corporais arrojados e de um flirt contínuo dirigido à plateia, cujas reações à sua dança gingona pareceram funcionar como estímulo à manutenção da personagem singular com que se apresenta.

Tratou-se também do primeiro momento que foi permitindo que fossem localizados os primeiros visitantes oriundos de Espanha, pelas reações mais efusivas aos temas de Bigott, desconhecidos da maioria do público.

De volta para o Palco Primavera, Atlas Sound, alter-ego de Bradford Cox dos tão mais interessantes Dearhunter, sempre estranho na languidez alheada de que se veste em palco, debitou umas quantas canções a eito, até finalmente se ter decidido dirigir ao povo. Aos 50% de público português, do qual julgamos que a maioria seja, efetivamente, do Porto, bem hão de ter sabido os galanteios à cidade. Cox, a quem o Porto parece ocupar um lugar muito especial no coração, diz tratar-se de uma das suas cidades preferidas e recorda, ainda com algum espanto, a noite em que atuou num barco (Portorio). Uma dedicatória melhor recebida que Te Amo de “Parallax”, no meio de uma prestação pouco memorável, numa ambiência derivativa que não soube mal ao fechar da tarde.

Consigo, Yann Tiersen disse ter trazido a chuva, já que também em Barcelona se vira obrigado a partilhar tempo de antena com a mesma. Relativamente indiferentes à nuvem passageira que cobriu por poucos instantes o céu e, por consequência, o Palco Optimus, ao som de Palestine, os festivaleiros não arredaram pé e mostraram-se práticos, ao retirar impermeáveis da mala e a converter as “saco-mantas” entregues pela organização em abrigos quadriculados.

Com as valsas de Amélie e outras que tais remetidas para uma esfera temporal longínqua, posto de parte o acordeão “afrancesizador” que muitos fãs lhe valeram, por entre entrosamentos de cordas em distorção e pontilhados eletrónicos, o multi-instrumentista francês e a sua banda passearam-se com maior convicção pelas composições mais recentes contidas em "Dust Lane" e "Skyline". A referência aos “primórdios” ou a um Tiersen mais clássico levada a cabo pelo domínio quase furioso do violino, no entanto, acabou por arrecadar mais aplausos, num momento de extrema beleza despojado de artifícios maiores.

No festival que garantem ser o que preferem, desta vez e pela primeira vez numa cidade (quis o azar!) climatericamente esquizofrénica, as atenções, de novo voltadas para o Palco Primavera, focaram-se nos Drums e na pequena parcela de público mais rejuvenescido.

Para o final deixaram-nos Let's Go Surfing, anunciada pelos assobios da praxe, a comprovar que as paisagens atravessadas são as do calor e do sol, com o Verão à respeita, e Dawn By the Water, a pôr cobro ao sucedâneo de temas que, apesar de bastante iguais entre si, se mostraram bastantes capazes e mantiveram as hostes bem animadas.

Num festival querem-se atuações grandiosas, embora os cardápios geralmente se componham maioritariamente de novas promessas e hypes efémeros dirigidos à juventude endinheirada, cuja gerência do fundo de meneio para a faculdade ultrapassa a ginástica de qualquer bom economista. Entre os nomes lançados ao coração dos hipsters, para quem o revivalismo dos anos 90 vale pouco mais que as calças de cintura subida e os casacos de ganga, lá surge ou outro com costas para aguentar o burburinho e lá se vão registando prestações dignas de história, a serem contadas e recontadas, envoltas em poeira mitológica, a quem não as pôde ver.

O primeiro dia de Primavera ficou muito aquém dessa obrigação histórica, sem muito a acrescentar, talvez à exceção do concerto de Suede, a contar ainda com uma porção de evangelizados de outrora, gratos pelo retorno ao passado.

Êxitos de além-século como Trash e Beautiful Ones (pelo menos o "lalalalala" todos souberam cantar) fazem parte de uma memória mais coletiva, que extrapola o posicionamento dos fãs, devido à propagação pelos canais de música, que melhor do que as rádios divulgavam o que de mais alternativo se fazia lá fora. Da mesma fornada, ficou de fora She's in Fashion, numa doce ironia face ao desfile de tendências e indumentárias ultra cuidadas avistadas no Parque da Cidade.
De aparência clássica e elegante, calças e camisa, e com o passar dos anos sem se fazer notar, Brett Anderson continua a fazer-nos saber porque é, ainda hoje, um dos homens mais emblemáticos do pop britânico, com uma atitude remanescente das décadas áureas, a quem soube transportar os presentes postos a jeito, que não se coibiu de cumprimentar aquando das variadas descidas a público.
Apesar da pouca insistência, com a preocupação em passar para o palco do lado a suplantar-se à vontade em ouvir mais Suede, estes regressaram a palco para um curto encore, para o qual Saturday Night, Still Life e New Generation ficaram reservados.

À meia noite e trinta, Jonathan Donahue entra em palco de garrafa de vinho ao alto, mais os seus Mercury Rev. Apesar de não serem Explosions in the Sky, que, apesar do cancelamento, ainda vinham inscritos nos horários distribuídos, como que a gozar com a tristeza alheia, souberam cativar mais gente do que aquela que, na condição de banda suplente, seria de esperar.

Por “sorte” - que é como quem diz há custa de muito bom trabalho passado -, à semelhança dos Suede, puderam contar com um ligeiro aglomerado de seguidores. Os indies de outras eras, para quem parte do cartaz parece ter sido tão bem construído, talvez até tenham agradecido a troca do post-rock texano pelo pop sonhador dos Mercury Rev.

Num bailado de gestos encantatórios e movimentos bamboleantes, Donahue, que já se havia mostrado capaz de fazer o 4, num atestado dispensável à sua sobriedade, liderou a prestação que não se fez indiferente aos olhos do público e onde Dark is Rising, felizmente, não pode faltar.

A proposta para o fim de noite fez-se, obviamente, na senda do mais dançável, com o electro rock dos Rapture a assegurar todas e quaisquer condições e a trazer, finamente, a festa ao Primavera. Do lado do público o entusiasmo ganhou-se ao primeiro tema, In the Grace of Your Love, e à entrada, um a um, dos elementos da banda.

Próximas do palco as modas agora são outras, a aludirem aos XX de sábado, com bonés, blusões de cabedal e argolas pesadonas. A nova geração de ouvintes prova-se, não sabemos se mais vigorosa, mas mais em massa, com a chegada apontada para a hora certa.
A aguardada estreia dos Rapture em terras lusas teve, curiosamente, mais estrangeiros que portugueses entre o público. O mesmo não se passará aquando de tão próximo regresso, agendado para o mês que vem, no Super Bock Super Rock.

Apenas com dois palcos ativos, localizados lado a lado, este primeiro dia de Primavera Sound fez-se calmamente, com a deslocação e as escolhas facilitadas.
Hoje contam-se mais dois palcos, propostas em dose redobrada e consequentes dilemas “morais”, assentes na triste noção de que há concertos para abdicar.

Texto: Ariana Ferreira
Fotografias: Filipa Oliveira

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