Pizarro contava apresentar em Leiria obras de Debussy, Ravel, Samuel Barber, Prokofiev, “todas ligadas à I Guerra Mundial, II Guerra Mundial, guerras da Coreia ou Vietname”.

Há algumas semanas, contudo, um incidente doméstico obrigou-o a repensar o programa que tinha preparado para a noite de domingo.

“Sofri um pequeno acidente estúpido em que cortei uma lasca de pele entre o polegar e o indicador da mão direita, não grave, graças a Deus”, contou à agência Lusa.

“Obviamente um pianista não deve lavar pratos e, pronto, está confirmado; assim é uma forma um bocadinho drástica de o fazer, mas já tenho uma desculpa para nunca mais lavar a louça [risos]”, acrescentou, bem disposto.

Para evitar cancelar a atuação, procurou alternativas. “Graças a Deus há mais repertório para a mão esquerda do que para a mão direita”. Mas faltava responder ao apelo da organização de Ronda Poética, que encomendou um concerto inspirado no tema do festival: “Poesia em tempo de guerra”.

“Lembrei-me do responsável por uma grande parte do repertório para a mão esquerda, o pianista austríaco Paulo von Wittgenstein”, que perdeu o braço direito na I Guerra Mundial e, “mesmo assim, teve uma carreira fulgurante”.

A pedido de Wittgenstein (1887-1961), “o concerto de Ravel para mão esquerda foi composto”, tal como os concertos de Prokofiev, Korngold, Strauss, Bortkiewicz ou Godovsky com a mesma particularidade, salientou.

“Portanto, ele foi uma pessoa que realmente enriqueceu imenso o repertório" para mão esquerda e, assim, o recital de Leiria será “um pouco uma homenagem a Paul von Wittgenstein”.

Num momento “em que estamos a atravessar guerras mal assumidas”, é importante, a partir do exemplo do pianista austríaco, “lembrar que há sofrimento, que muitas vezes o sofrimento é desnecessário, e que muitas vezes desse sofrimento podem nascer coisas positivas”.

“Queria não tanto um programa que mostrasse os horrores da guerra”, mas sim que relevasse “o espírito de sobrevivência de uma pessoa que perde tanto num conflito e que consegue 'dar a volta', criar o belo e enriquecer por causa dessa perda”.

Assim, Pizarro selecionou para Leiria obras de Bach, Brahms, Scriabin, Bortkiewicz, Blumenfeld, Godowsky, Sancan e Bartók, num programa que descreve como “extremamente aliciante”.

“Já toquei vários concertos para a mão esquerda, mas a nível de recital completo, só com uma das mãos, é a primeira vez”, revelou, antecipando que o desafio será “mais cansativo”.

“No fundo, uso metade das mãos que tenho, mas essa mão que funciona tem de tocar o dobro das notas, notas suficientes que ambas as mãos fariam. Qualquer uma destas obras poderia tocar com ambas as mãos e ninguém perceberia que era para mão esquerda só”, detalha Artur Pizarro.

Por outro lado, as peças são escritas de tal forma que, “se na plateia estiverem com os olhos fechados, não percebem que estou só a tocar com a mão esquerda”.

No domingo, no Teatro Miguel Franco, a partir das 21:30 (entrada livre), Artur Pizarro - quase recuperado do corte na mão direita - dará “um concerto único”.

“Tem sido um programa que me deu imenso prazer montar”, mas que dificilmente se repetirá, a menos que “um promotor me dê um cachê muito baixo e eu digo, ‘ouça, se isso é metade do que me pagam normalmente, só toco com a mão esquerda’ [risos]”.

Desta experiência reservará, para o futuro, algumas obras, “para extra programa ou para inserir num programa para ambas as mãos”. “Há aqui obras muitíssimo interessantes, que quero guardar”, concluiu.