Palco Principal – Mais de duas décadas de carreira mostram-nos que o piano é quase uma extensão do teu corpo, um melhor amigo. Como começou esta relação?

Rita Guerra – A relação com o piano vem de pequenina. A minha avó era professora de piano e de francês -dava aulas às meninas prendadas. O piano vertical, também ele francês, veio para cassa da minha mãe quando a minha avó teve que ir para um lar de idosos – a minha mãe foi a única que quis ficar com ele, e ainda bem que o fez. O meu irmão Pedro sempre teve um gosto e uma paixão muito grande pela música, ao ponto de se sentar ao piano e começar a tocar, e foi ele que me puxou a curiosidade de abrir aquele móvel diferente e explorar. Foi aí que começou a minha ligação com o piano, com uma música dos Pink Floyd e outra do Neil Young. Mais tarde, comecei a ter vontade de aprender mais e os meus pais inscreveram-me na Academia de Amadores de Música. Quando fui viver para os Açores, estive no Conservatório Regional de Angra de Heroísmo. Nos Açores passei muitas horas ao piano. Nas horas vagas ia para a praia, andava de bicicleta, estudava (pouco) as coisas do liceu e, quando me apetecia, ia para o Salão Lisboa tocar num Steinway no qual ninguém tocava, mas que estava sempre afinado. Foi lá que descobri que gostava de cantar e tocar piano. Tinha 12 anos. De volta ao continente, fui para o Instituto Gregoriano de Lisboa, onde já tinha estado, mas a minha vida levou uma grande volta. Sinceramente, não tinha muita paciência para tocar escalas, para ter uma formação clássica, não era aquilo que eu queria. Eu queria era cantar.

PP – Sobre o amor, principalmente, certo?

RG – O amor é um sentimento universal, apesar de haver amores diferentes, como toda a gente sabe. Neste momento, já com experiência de vida, faço uma filtragem das letras e das músicas, escolho ambiências que tenham a ver com o percurso que eu tive, com o meu estado de espírito. Às vezes, identifico-me com as músicas, não pela letra, mas pelo arranjo, pela sonoridade, que me faz ficar com pele de galinha. Gosto de cantar histórias positivas e negativas porque ambas fazem parte da vida. Na música, o amor que gere a minha interpretação é o amor que lhe tenho, à música, àquilo que faço.

PP – Hoje, o que te define, enquanto cantora?

RG – Paixão e dedicação, in loco. A «prova dos nove» é, para mim, indispensável. Sou muito exigente e perfecionista. Tenho imenso respeito por mim e pela minha voz, tenho que a cuidar. Não faço números que não consigo fazer, tenho noção das minhas limitações. Tenho muito respeito pelo público e gosto de dar o meu melhor. Se assistires a um concerto meu, apanhas a minha essência, aquilo que sou, a cantar, a falar. Não é nada estudado, ensaiado. What you see is what you get (risos).

PP – Ainda ficas nervosa antes de subir ao palco?

RG – Ui! Sempre! E hei de estar sempre nervosa. Conheço muita gente, já com muitos anos disto, que fica uma pilha de nervos. É como ires fazer um exame de final de curso. Em conversa com a Conceição Lino, expliquei-lhe que, quando se está em palco, há uma assistência maior ou mais pequena, que foi ali para te ver, a pagar ou de borla – não interessa -, que está à espera que dês o melhor de ti, para sair de lá satisfeita, para querer comprar o teu próximo disco e para que fique sedenta por mais. Com um público frio, é mais complicado, mas isso já não me acontece há muito tempo. No Casino, isso acontecia muito, havia públicos muito diferentes – os chineses e os alemães eram uma péssima audiência. Havia dias em que éramos 60 pessoas em palco e na sala estavam seis, mas com isso aprende-se a lidar. O desafio aparece à tua frente e tu ultrapassa-lo, ou não. Tens que subir ao palco com problemas, com febre, com uma discussão que acabaste de ter, com um telefonema que te deixou alarmada, tens que fazer tudo como deve ser. Então no Casino, em que tudo é programado, tens que dar três passos para a direita, depois um passo para a frente e, se não o deres para ali, há um bailarino que tropeça e cai o cenário. Tens que estar sempre à altura, todos os dias. Isto de ser artista não é só abrir a boca e cantar.

PP – Além do Casino, onde muito te deste a conhecer, também a Disney teve um importante papel na sua carreira, tendotu colaborado em filmes como o “Hércules”, “A Dama e o Vagabundo”, “O Rei Leão”, “A Pequena Sereia”, “Tarzan”, entre outros. Guardas boas recordações dessas experiências?

RG – Sim, foram maravilhosas e muito diferentes. Nos desenhos animados tens que te aproximar o mais possível do original. Cheguei a fazer casting para duas e três personagens e não fui apurada pois havia alguém que se parecia mais com a voz original. Não tem a ver com o facto de cantares bem ou mal, mas sim com o facto de conseguires, ou não, dar outra cor à tua voz, seres elástica. É um desafio – coisa que eu adoro -, um trabalho muito exigente. Por vezes, tens que mudar de dicção, tens que fazer um sotaque à moda da serra ou tens que falar à fanhoso, é muito engraçado. Foram experiências muito enriquecedoras, que me fizeram perceber que a minha voz faz mais coisas do que aquelas que pensava. Infelizmente, hoje em dia faz-se pouco ou nada de desenhos animados em Portugal. O grupo é muito pequeno, os orçamento estão cada vez mais baixos, e tenho pena. Mas continuo a manter uma relação com a Disney, que foi a companhia que mais trabalho me deu e mais me procurou.

PP – Há sempre uma criança dentro de cada pessoa…

RG – Completamente! Tenho 45 anos, mas sinto-me uma miúda com 16 (risos).

PP – Foram muitas as colaborações quefizeste com outros artistas, desde Beto a Ronan Keating e, mais recentemente, Mastiksoul ou Mickael Carreira. Alguma colaboração de sonho ainda não concretizada?

RG – O George Michael. Ele está a cantar cada vez melhor. Gosto muito dele, principalmente a partir do álbum “Older”. Tenho acompanhado o seu trabalho e ele tem vindo a amadurecer, a enriquecer-se a nível de interpretação e composição. É das poucas pessoas que me faz chorar ao ouvi-la cantar. Posso ver um concerto dele 40 vezes seguidas, mas há aqueles momentos em que me arrepio, ele é genial. Tenho pena que muita gente não se dê ao trabalho de o ouvir e perceber melhor o trabalho dele. O público liga-o muito àquelas músicas dos tempos dos Wham!, como a Last Christmas ou, mais tarde, a Careless Whispers, mas ele na altura cantava de uma forma um bocado pirosa. Se ouvires a versão dele agora, é mil vezes melhor!

PP – É ele o teu artista favorito?

RG – Não, é o Michael Bolton. Tive a oportunidade de estar com ele mais do que uma vez, o que me deu a possibilidade de perceber quem é o homem para lá do sucesso e da popularidade. É alguém extremamente correto, muito educado, um gentleman, de uma sensibilidade extrema, muito bom colega, exigente, afinadíssimo, com uma carreira brilhante e cheia de sucessos. É um senhor da música e faz parte da minha vida na música desde que surgiu o seu primeiro disco em Portugal. É muito estimulante e gratificante trabalhar com alguém assim. É um excelente exemplo a seguir. Preocupado com os outros, gere uma fundação que ajuda à pesquisa do cancro, doença que matou a sua mãe.

PP –Há algum álbum que gostarias de ter sidotu a cantar?

RG – Talvez o “Come On Over”, da Shania Twain. Há qualquer coisa de muito americana em mim,algo muito country, e o álbum em questão foi produzido e tem composições de um dos maiores produtores e compositores de rock de sempre: o Robert John “Mutt” Lange. Ou seja, as duas vertentes musicais estão juntas pela primeira vez neste álbum fabuloso, produzido por um dos génios da música e cantado por uma das cantoras que mais admiro. É um álbum que gostaria de ter sido eu a cantar.

PP – Ao vivo,cantas quase sempre de olhos fechados. Quando isso não acontece e consegues olhar para a plateia, o que vês?

RG – Há duas situações. Sempre que estou liberta do piano, faço questão de perceber a aura do público. Há sempre alguém que chama a atenção. O meu público vai desde crianças com quatro anos até senhores com 80, o que para mim é maravilhoso, é lindo. E eu meto-me com as pessoas. Sou menina para, a meio de uma canção, parar e dizer para uma pessoa que já não vejo há muito tempo: “Olha, estás aqui!”. Muitas vezes não vejo as caras das pessoas, vejo vultos, por causa da iluminação. Sempre que posso, venho à frente, faz-me bem estar próxima das pessoas, olhá-las nos olhos. É bom para quebrar aquela barreira entre artista e público – fazemos todos parte do mesmo. A mim calha-me é a parte de estar no palco, mas eu às vezes também os ponho a cantar… (risos)

PP – Algum episódio que recordes com especial carinho?

RG – Tantos! Num daqueles eventos com milhares de pessoas, estava com in-ears, não ouvia o público, e um senhor desata aos saltos e toda a gente fica a olhar para ele, a rir. Fiz questão de parar a banda e então ouço: “Oh Rita, faz-me um filho”. Um homem dizer isto… é lindo! Também já me aconteceu, num concerto na Baía de Cascais, com um sem fim de gente, nós entrarmos em palco a todo o gás, a banda começar a tocar com power e eu subir as escadas, começar a cantar e, quando estou a descer as escadas, a dançar a primeira música, começar a ver as pessoas a acenarem. Tiro um in-ear – “Hã?!” – e pessoal todo: “Não temos som cá à frente!”. Só nós é que estávamos a ouvir! E eu disse: “Pronto, vamos fazer de conta que isto não aconteceu”. Fiz um voice rewind e saí de marcha atrás. E lá arrancámos outra vez.

PP – No próximo sábado, o CCB vai receber um concerto muito especial teu… O que se pode esperar desse espetáculo?

RG – Para já, pode-se esperar que eu apareça. Vai ser uma noite diferente, vou ter convidados, amigos, colegas… Vou, também, lá ter o meu filho, não no meu concerto, mas com um projeto de música eletrónica que ele tem com dois colegas – os Guesswhat. Vou ter malta da velha guarda, representada pelos Cais do Sodré Funk Connection, os HMB, duma geração mais recente, e o Pedro Tatanka. Nessa noite vou cantar o que me apetecer, não há cá alinhamentos. É para curtirmos todos, vamos fazer uma grande jam session. Claro que vou tocar temas ao piano e vou ter em conta alguns pedidos que me foram feitos pelo público. Foram tantas as listas com propostas que, de certa forma, me facilitaram a vida: entre as mais pedidas e as que gosto mais de cantar, cheguei a um consenso. Há mais surpresas, mas ficam guardadas para essa noite.

Sara Fidalgo