Lisboa, Luanda. Luanda, Lisboa. Ex-metrópole e ex-colónia num pacto de sangue: a irmandade improvável, mas completamente aprovável. O Musicbox foi a pele onde escorreu uma pigmentação fraterna entre os nossos poros, os poros de Ikonoklasta e os poros de Batida. A melanina dérmica é irrelevante, a discrepância de sotaques é chachada, quando o ritmo persuade e apaixona, quando o capacete abana e a palavra trespassa, desperta e inflama.   

aniversário do musicbox

O início deste texto, apesar de medíocre, é uma tentativa de silabar com a mestria de Ikonoklasta, é um simulacro estúpido da spoken-word no papel: pobre written-word. Até porque, àquela hora, já tínhamos a boca cheia da divinal paracuca - e falar de boca cheia é feio. Agora, cantar de boca cheia é bonito, sim senhor. A boca de Ikonoklasta, por exemplo, estava cheia de verdades, com dois ou três tabuísmos pelo meio – como é óbvio. Para quem atuava pela primeira vez em Lisboa, esteve à vontadinha o rapaz (e ainda bem que sim). Espalhou o seu veneno e aguçou-nos a militância. Mas atenção: nada de sectarismos. O que realmente importa é a paz, o amor e o respeito. Gostámos, especialmente, quando chamou Valete, ou quando entoou “Hardcore” com XEG e Sir Scratch.

Volto a insistir na ideia inaugural. O afrobeat teve muito de tugabeat – referimo-nos à pulsação cardíaca, claro está. Ou será que devemos dizer Batida cardíaca? A frequência dos batimentos começou por ser estranhamente tépida, apesar do roça-roça inevitável e do pouco espaço para respirar. Mas lá está: respirámos todos pelos mesmos pulmões. A oxigenação chegou, não das moléculas, mas dos ritmos metálicos, quebrados, da sublevação dos órgãos vintage e dos rendilhados electro. Depois, começou tudo a marimbar-se para os casacos e para a inibição. A roda formou-se, sob voz de comando de Pedro Coquenão, só que não houve espaço para que todos tirassem a ferrugem das pernas. “Pobre e Rico” diz que “não há branco, nem mulato, nem preto. O que há? Pobre e Rico.” Para sermos honestos, todo o pobre saiu dali milionário.

Tanto que nos estava a apetecer uma bela de uma muamba. Mas a culinária de Batida não é tanto de encher o estômago, e sim de atulhar o espírito. E que bem que ele foi atulhado com Cuka e Bazuka. A terminação de ambas é igual, o que não deixa de ser curioso, já que também as duas proporcionaram o mesmo êxtase. Ikonoklasta regressou com a mesma argúcia, desta vez desembainhando a bandeira angolana. A iconoclastia de Batida também esteve patente nas projeções em tela, embrenhadas entre músicas, através das quais, o pranto e o trauma do remanescente colonial nos comoveram. Batida não é ultramarino. Batida é ultrassónico demais para uma Angola putrefacta e desumana, a mesma que Ikonoklasta crucificou. Um momento bonito foi gerado por “Tá Doce”, que realmente adocicou a memória de António Sérgio.

Entretanto, houve direito a parabéns – desavindos e multi-tonais - para o Musicbox. “Alegria” só chegou no fim, mas o sorriso esteve connosco desde o início. Uma dança da família resumiu na perfeição tudo o que aqui dissemos.

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Fotografias de Débora Lino