“Estes artistas não só deviam ter sido ajudados, como deviam ter sido promovidos para substituir aquilo que eram grandes eventos, que esses efetivamente, sendo eu contra o confinamento, também sou contra que se andem aí a realizar festas com milhares de pessoas, porque isso aí as taxas de contágio são altíssimas”, justificou.
Para Raquel Varela, a cultura é “um serviço essencial” nas sociedades desenvolvidas: “Os países civilizados apoiam a cultura. Só sociedades primitivas, pré-históricas é que acham que a única coisa importante é estar vivo, comer e ter um abrigo”.
“As sociedades desenvolveram-se ao ponto de produzir para dar capacidade ao homem de se humanizar. A humanização vem pelo trabalho e pela cultura, portanto a música, o teatro, as artes plásticas, a dança, tudo isso é absolutamente fundamental do ponto de vista daquilo que nós podemos caracterizar como humanidade”, acrescentou.
A historiadora, que se tem dedicado às questões do trabalho e dos conflitos sociais, considerou que pequenas estruturas de artistas que atuam nas aldeias portuguesas deveriam ser apoiadas, pelo papel que desempenham nas comunidades.
Não sendo possível a realização de grandes espetáculos, devem ser criadas condições para promover concertos ao ar livre de nível local, na opinião da historiadora e professora universitária. “Para que as pessoas continuem a ter acesso à cultura e corram menos riscos” de contágio, defendeu.
“Numa sociedade inteligente, tinham-se promovido mais as coisas locais, mas para isso era preciso considerar que a cultura é um bem essencial, coisa que este governo, que os governos, em geral, não consideram. Era preciso pensar uma democracia de base participativa, em que as regras não fossem impostas de cima para baixo, mas de baixo para cima, ou seja, em que as comunidades, depois de conversarem com o delegado de saúde, estabelecessem regras e dentro dessas regras, por exemplo, concertos ao ar livre, desportos ao ar livre...”, indicou.
De acordo com Raquel Varela, várias atividades nunca deveriam ter sido interrompidas, pela importância que têm no equilíbrio do ser humano.
“A saúde mental é a saúde física. Está mais do que provado que ninguém pode estar fisicamente bem se estiver mal mentalmente, isso não existe, porque a saúde não está dividida. Isso é uma visão cristã paracientífica da saúde. É a ideia de que nós temos um corpo e uma alma, isso não existe”, advogou.
“O governo acha essencial manter as indústrias abertas e os supermercados gigantes, onde há grandes taxas de acumulação de capital e passou, obviamente, a cultura para o 10.º ou 20.º plano, como tudo aquilo que é essencial à vida, tirando comer”, observou .
“Nenhuma indústria foi fechada, mesmo as que produzem uma série de bens inúteis. Tanto na pandemia, como fora da pandemia, continuamos a produzir armas e instrumentos para armas, que nenhuma sociedade civilizada devia produzir. Isso tudo nunca parou, é o lazer o que parou, foi a cultura”, criticou.
Na visão da investigadora, está em curso “um processo gigantesco de longa duração de desestruturação produtiva, como aconteceu nos anos 70 ou nos anos 20, a seguir à I Guerra Mundial”, com “a proletarização massiva de grandes quantidades de pessoas”.
Questionada sobre a situação de músicos que se vêm forçados a emigrar e a procurar trabalho indiferenciado, quando sempre viveram da música, Raquel Varela considerou tratar-se de um processo de “desagregação social, de regressão social e de proletarização”.
“Vamos perder músicos, vamos perder população que emigra para França e vamos perder músicos que passam a ser trabalhadores desqualificados. O país, como proposta de desenvolvimento, perde todo ele. Ganham as taxas de lucro de quem está ligado ao setor da construção, por exemplo”, concluiu.
Raquel Varela é autora e coordenadora de 23 livros sobre história do trabalho, do movimento operário, história global.
Comentários