A biografia “Sontag, vida e obra”, de Benjamin Moser, mergulha na vida de Susan Sontag a partir de arquivos privados e testemunhos inéditos, que revelam uma existência conflituosa no âmago de uma das mais importantes intelectuais do século XX.

A monumental biografia, com quase 700 páginas, vencedora do prémio Pulitzer 2020, chega hoje às livrarias portuguesas, apresentada pela editora Objectiva como “o grande romance americano sob a forma de biografia”.

Incluindo quase uma centena de imagens e inúmeras entrevistas conduzidas em diferentes países, “Sontag, vida e obra” é o primeiro livro que tem como fontes os arquivos privados da escritora e testemunhos inéditos de várias pessoas que com ela privaram, incluindo Annie Leibovitz, com quem manteve uma longa relação, que nunca reconheceu publicamente.

O historiador Bejamin Moser, que já anteriormente se debruçara sobre a vida da escritora brasileira Clarice Lispector, e por isso se sentiu “mais preparado para ter a vida de alguém nas mãos”, como o próprio contou numa entrevista, teve acesso privilegiado ao espólio de Susan Sontag (1933-2004).

O biógrafo foi a primeira pessoa autorizada a ter acesso ao computador pessoal de Sontag, guardado nos arquivos da biblioteca da Universidade da Califórnia em Los Angeles e a consultar o material nele contido, incluindo ‘emails’.

Susan Sontag foi uma mulher emblemática, envolta em mitos e incompreendida, louvada e detestada, cujos escritos sobre arte, política, feminismo, homossexualidade, drogas, fascismo, freudianismo, radicalismo e comunismo marcaram gerações de leitores.

“Era Atena, não Afrodite: uma guerreira, um ‘príncipe das trevas’. Com a mente de um filósofo europeu e a aparência de um mosqueteiro, reunia qualidades anteriormente combinadas em homens. A novidade é que agora se encontravam concentradas numa mulher - e, para gerações de mulheres artistas e intelectuais, essa combinação proporcionou um modelo mais potente do que qualquer outro que conhecessem”, escreve Benjamim Moser, nas primeiras páginas da sua biografia.

No início da carreira, Susan Sontag era “incongruente: uma jovem linda, tão culta que intimidava; uma escritora da hierática fortaleza do mundo intelectual de Nova Iorque que se ocupava da ‘baixa’ cultura contemporânea que a geração mais velha declarava abominar”, e a sua versão fotogénica estaria sempre em desacordo com “Miss Bibliotecária” (o nome que dava ao seu eu livresco), descreve Moser.

Esta dualidade de Sontag emergia em outros aspetos da sua vida, como o biógrafo expõe, seja na sua sexualidade, seja na obsessão com o objeto e a metáfora desse objeto (a relação entre uma coisa e o seu símbolo), ou numa insistência em separar o corpo da cabeça.

Num dos seus diários, a autora fez um esquema em que anunciou “cabeça separada do corpo”, um mecanismo de defesa que criou para se refugiar da dor, causada pela morte do pai, pela sua própria obsessão com a morte, pelo alcoolismo da mãe.

Nas palavras de Benjamin Moser, “em criança, perante uma realidade terrível, refugiou-se na segurança da sua mente. Desde então, tentaria sempre arrastar-se para fora dela”.

“Fingir que o corpo não estava presente também permitiu a Sontag negar outra realidade inescapável: a homossexualidade de que sentia vergonha”, porque apesar de relações ocasionais que teve com homens – aos 17 anos casou com Philip Rieff, de quem teve um filho -, o seu erotismo concentrou-se quase exclusivamente em mulheres, desde o início da adolescência.

Para Sontag, a realidade, “a coisa real, despida de metáfora”, não era aceitável e desde cedo que soube que “a realidade era frustrantemente cruel, algo a ser evitado”.

Por isso, chama a atenção para a diferença entre a pessoa e a sua aparência (“o eu enquanto imagem, fotografia, metáfora”) e observa que é fácil entre a fotografia e uma vida, escolher a fotografia.

A fotografia para Susan Sontag esteve sempre relacionada também com a guerra e com o sofrimento por esta causado, com as representações visuais da guerra e da violência na cultura.

A questão sobre “como podia a dor ser retratada e suportada” perseguiu-a sempre, desde a infância, e desde o momento em que, com 12 anos, viu pela primeira vez, numa livraria, fotografias do Holocausto.

Como a própria escreveu: “Nunca vira – em fotografias ou na vida real – nada que me atingisse de forma tão cortante, profunda, instantânea”.

Aprendeu, pois, desde cedo a refugiar-se na arte, escondia-se num livro, na ópera, ou no cinema, quando se defrontava com a tristeza, e, apesar de não compensar os dissabores, “foi um paliativo indispensável”.

Foi isto que mais tarde, nos anos 1990, a levou à Sarajevo sitiada pelas tropas sérvias, para encenar a peça “À espera de Godot”, de Samuel Beckett, com artistas locais, convicta de que era “exatamente do que os bósnios precisavam”.

Sontag quis provar que “a cultura era algo por que valia a pena morrer”, porque foi essa crença que lhe deu “forças durante uma infância infeliz, quando livros, filmes e música lhe ofereciam uma ideia de uma existência mais rica e a ajudavam a atravessar uma vida difícil”, escreve Benjamin Moser.

A sua sede de realidade “conduziu-a a extremos perigosos” e, além do cerco a Sarajevo, testemunhou e dissecou outras grandes revoluções da segunda metade do século XX: a revolução cubana, a queda do Muro de Berlim, a guerra no Vietname, os conflitos em Israel.

“Como todas as metáforas, também esta era imperfeita”, e a real Susan Sontag era distinta da imagem que a simbolizava, escreve o biógrafo.

“Muitos que se depararam com a mulher de carne e osso ficaram desapontados ao descobrir uma realidade muito aquém do mito glorioso. A deceção com a sua pessoa, na verdade, é um tema notório nas memórias alheias de Sontag, para não falar nos seus textos privados”.

A própria “alertou contra as mistificações de fotografias e retratos: inclusive os dos biógrafos”.

Moser escreve que “um dos trunfos de Susan Sontag assentava no facto de qualquer coisa que os outros pudessem dizer sobre si, já ter sido dita, antes e melhor, pela própria”.

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