Nos últimos dias, a Lusa contactou trabalhadores independentes e empresários responsáveis por garantir que tudo corre de acordo com o planeado nos espetáculos de músicos e bandas, diariamente por todo o país e no estrangeiro.
A preocupação é algo que todos têm em comum neste momento. Com trabalhos adiados ou cancelados nos próximos meses, o dinheiro não entra, mas tem de continuar a sair porque há contas para pagar.
Segundo a Associação de Promotores e Espetáculos, Festivais e Eventos, entre 08 de março e 31 de maio foram cancelados, adiados ou suspensos 24.815 espetáculos em Portugal por causa das medidas de contenção da epidemia da covid-19. O número foi revelado em 03 de abril e a associação alertava que poderia “aumentar exponencialmente” nas semanas seguintes.
Os profissionais do setor acreditam que “os primeiros a ser cancelados a 100%” serão também “os últimos a ser retomados”, porque lidam com “multidões e, em produções mais pequenas com ajuntamentos”, com disse à Lusa o ‘roadie’ Emanuel Rocha.
Desde 13 de março que Emanuel Rocha só recebe “emails, às dezenas por dia, a cancelar coisas”. “Só ainda não estão canceladas a partir de setembro, mas não vão acontecer. Alguns trabalhos que possa ter por cancelar são as pessoas a adiar o inevitável”, disse.
Margarida Moreira, ‘designer’ de iluminação, tem “todo o trabalho cancelado até meio de maio”, mas lembra que “há muita coisa na Europa a ser cancelada até bem mais tarde, até setembro”. “Prevê-se um ano negro”, disse.
Emanuel dá o ano como “perdido”. Condensar tudo no último trimestre do ano parece-lhe “impossível”, além de não haver “fins de semana suficientes para fazer tudo o que está a ser adiado”.
Patrícia Ribeiro, técnica de som, é da mesma opinião: “O que perdemos, perdemos. Em poucos meses vão reagendar coisas e não vamos conseguir fazer todos, muito pouco se vai recuperar”.
Os trabalhos que Patrícia tinha agendado começaram a ser adiados a partir de 09 de março. Foram “várias dezenas”.
O mesmo aconteceu com João Tereso, técnico de som, que trabalha “quase em exclusivo com eventos ao vivo”. “08 de março foi o último dia em que trabalhei. Desde então, todos os dias foram cancelados eventos lá fora e em Portugal”, partilhou, referindo que a informação vai chegando “a conta-gotas”. Para já, até final de maio não terá trabalho, “seguramente”, mas sabe que “há entidades a cancelar concertos em junho e julho”.
“Alguns mantêm-se, mas estamos sem data. De repente ficamos sem nenhum tipo de oportunidade de trabalho, em lado nenhum, porque estamos todos parados. Não há ninguém a tocar. Somos milhares de profissionais e estamos todos completamente parados, no mundo inteiro”, disse.
Nelson Carvalho, técnico de som, só não está completamente parado porque também faz trabalho de estúdio. “Estou em casa, a misturar [álbuns], tinha várias misturas penduradas, que vou resolvendo e tenho feito manutenção do equipamento”, contou. No entanto, não faz ideia “quando é que voltará a entrar dinheiro”.
“Até fim de maio seguramente não entrará mais nada, e se entrar será do desenho de um peça de teatro, uma estreia que não houve, mas é muito incerto”, partilhou.
Para Nelson Carvalho, os cancelamentos começaram a 13 de março e o próximo espetáculo que tem “agendado, sob reserva, é no final de agosto”.
Casado com uma agente de espetáculos, a preocupação é a dobrar: “Tenho quase a certeza que não me vou aguentar até lá desse modo. Tenho muito equipamento e investimento, ‘leasing’ para cobrir. Se me tivesse preparado conseguia, assim é mais difícil”.
Mesmo para os que acumulam várias profissões, o panorama é idêntico.
Tiago André é ‘roadie’ e ‘VJ’ de The Legendary Tigerman, mas também é o DJ a boy named sue. Divide-se entre várias atividades porque “o problema desta vida de artista é que é difícil uma pessoa fazer só uma coisa”.
Março e abril deviam ser meses cheios de trabalho: sessões de DJ, três a quatro vezes por semana e por vezes duas no mesmo dia, concertos de The Legendary Tigerman, e a função de ‘stage manager’ no festival e convenção MIL. Tudo cancelado.
Tal como Tiago André, Maria Fontes divide-se entre várias atividades, é cantora, maquilhadora, ‘road manager’ e ‘runner’. “Todos os meus trabalhos estão comprometidos” e não há nenhum em que consiga trabalhar a partir de casa. Neste momento o meu rendimento é zero”, contou.
Não são só os trabalhadores independentes que sofrem com esta crise, o mesmo se passa com as empresas de audiovisuais.
O cancelamento ou adiamento dos espetáculos “implicou uma total paragem” da empresa de fornecimento de material de iluminação e audiovisual FX Road Lights.
“As empresas que fornecem técnicos e equipamentos estão totalmente paradas. Estamos todos em suspenso a tentar perceber o que é que vai acontecer”, contou Leocádia Silva, diretora geral da FX Road Lights, que integra o Movimento Cancelado, da União Nacional Empresas Fornecedoras de Audiovisuais, criado recentemente.
A empresa tem “25 funcionários diretos e um grupo de freelancers recorrentes de cerca de 10 profissionais”. Para enfrentar este momento, a empresa endividou-se, “como todas as empresas”, para “passar as despesas para mais tarde” e assim “tentar a manter as pessoas”.
“A tesouraria de março ainda nos permitiu fazer o pagamento [dos salários] na íntegra, mas à partida vamos ativar o ‘lay-off’, embora não na totalidade, vamos deixar serviços mínimos”, disse.
Para “não viver tanto a sazonalidade” da área, Leocádia Silva acabou por “agarrar o mercado da televisão” e trabalha com várias produções ao longo do ano, mas também isso parou.
Quem trabalha na área dos espetáculos de música já se habituou a ter meses melhores e outros piores, do ponto de vista financeiro. Quando há mais trabalho acumula-se para os meses em que há menos. Como alguns profissionais referiram, são um pouco como a formiga da fábula, que acumula no inverno para ter um verão descansada.
Emanuel Rocha tinha “algum dinheiro de lado”, porque tenta “estar uns meses à frente”, mas tem que pagar renda, contas e alimentação. “Estou zerado. Vale a minha mulher e mãe do meu filho, que é psicóloga clínica e tem consultas pela Internet, mas não tem nada que ver com o que era. Neste momento está a entrar o mínimo. Se contar só com o que eu ganho, tenho semanas de sobrevivência. E semanas porque nunca fui um esbanjador”, partilhou.
João Tereso lembra que os ‘invisíveis’ da área já têm, “por característica das profissões, alguma resiliência” e estão “habituados a lidar com a incerteza”.
“Mas, com este tipo de incerteza e sem nenhuma perspetiva de trabalho ninguém está habituado, nem preparado, pior ainda nesta altura em que começávamos a arrancar para a altura forte do ano”, referiu.
Patrícia Ribeiro também não se lembra de nada assim, em quase vinte anos como ‘freelancer’.
“Há meses melhores do que outros, mas tenho sempre trabalho. Não tem nada que ver com isto. Consegui sempre trabalhar para pagar as contas e viver minimamente e noutros meses tiro mais rendimentos. Se não fosse assim não trabalhava como ‘freelancer’ há tanto tempo”, referiu.
Margarida Moreira teve “sorte”, porque teve uma digressão em janeiro e fevereiro que já foi paga. “Não estou mal durante uns meses, mas não sei se consigo aguentar um verão inteiro sem fazer nada, e como tenho uma filha pequena não é tão fácil como se estivesse sozinha. Acho que dá para quatro ou cinco meses e depois logo vejo o que é que faço”, contou.
Também “por sorte”, nos meses anteriores a esta paragem Tiago André teve “bastante trabalho”, mas tem “consciência” que “não haverá trabalho antes do outono ou depois disso”.
“Não estou a ver pessoas a terem confiança para se juntarem numa pista de dança ou numa multidão num concerto tão cedo. Há que ser consciente com isto, não vai passar em dois meses”, considerou.
Tiago André reforça que “há toda uma classe que faz as coisas acontecer e que não terá dividendos, não estará contemplado nos apoios e nem recebe dinheiros da SPA [Sociedade Portuguesa de Autores], de direitos de autor, nem nada disso”.
Se por um acaso tudo voltar em setembro, “são seis meses sem trabalhar”. “Já comecei a pensar se terei que me dedicar a outra coisa qualquer, arranjar um emprego em que possa ganhar algum dinheiro e que não tenha que ver com isto”, partilhou.
Tiago André não tem filhos, mas tem vários colegas que sim e nem quer imaginar como seria.
Maria Fontes sabe-o, tem dois e são ainda pequenos. Este mês, vai conseguir viver dos trabalhos que fez até março, em maio não sabe como vai ser. “Estou a zero de rendimentos. Para pessoas como eu, que vivem estritamente do mundo do espetáculo e da música isto é muito complicado, porque não há entrada de dinheiro de lado nenhum”, partilhou.
A maioria dos trabalhadores contactados pela Lusa já tinha recorrido ou admitia recorrer aos apoios anunciados pelo Governo aos trabalhadores independentes, nomeadamente em relação ao adiamento do pagamento da Segurança Social.
Emanuel Rocha é uma exceção, por considerar que “não dá soluções, só adia a dor das pessoas”.
“Quem como eu não se mete em créditos está a ser obrigado a tal. Isto não é apoio, o que está a ser apresentado aos trabalhadores independentes é ‘deixamos-te pagar isto em não sei quantas vezes’”, defendeu, revelando que quando viu as coisas “mal paradas”, cessou atividade e só volta a abrir “quando tiver a certeza” que tem trabalho.
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