Seis anos após a sua estreia literária, com o livro de poesia “Jóquei”, Matilde Campilho lança agora, novamente pela Tinta-da-China, um livro de narrativas curtas, com retratos imaginários, que compreendem coisas como: uma paisagem, um objeto, uma pedra, um bicho, um fogo, um gesto, um instrumento musical, um rosto ou um deus.

Em entrevista à Lusa, a autora explica que “‘Flecha’ é um livro de histórias, que não chegam a ser contos, porque muitos não têm sequer tamanho nem conteúdo para isso”.

Assim, é com as duas histórias que abrem o livro: “O siroco lambe a copa de um pinheiro-manso. A árvore tem cinquenta e oito metros de altura, um e meio de diâmetro” e “Um homem leva a mão ao peito e repete quatro vezes o nome do seu irmão”.

“São histórias que podemos ouvir na rua, à volta de uma fogueira, pela voz dos nossos avós, contadas à mesa. São essencialmente histórias imaginárias”, diz.

Estas histórias que trespassam geografias diversas resultam de um esforço da autora para “procurar lugares diversos”.

“Queria que houvesse brincadeira, jogos, lugares que não precisam de ter necessariamente nome, nem referência ao lugar, que podem ser simplesmente ‘à beira-mar’, mas também outros que quis tocar especificamente, como o México, Moçambique ou Grécia”, diz.

No entanto, todo o processo de escrita foi trabalhoso e fruto de muita pesquisa, de “dias inteiros debruçada sobre um tema, uma pintura, um autor”.

“Umas coisas levavam a outras coisas, uma pintura levava a outra, e foi sendo feito diariamente, com certas regras. Mas não é um livro preso, a imaginação anda à solta. É um livro com um plano, pensado desde o princípio”, acrescenta.

A “sorte e o azar” de Matilde Campilho foi ter percebido que o que a move na escrita é a própria escrita e, por consequência, a escrita é o que a move a ela.

“Sou o que faço. Escrevo todos os dias. A escrita é o que me move, faz parte dos meus movimentos físicos e emocionais e é como entendo o mundo. E este é um livro que abre mundos”, afirma.

Na escrita também a move “a curiosidade, o poder da imaginação, ligado à memória”.

“O lado da imaginação é onde nos encostamos, descansamos e nos espantamos”, acrescenta.

E como surgem as histórias, variadas e diversas, que enchem as mais de 250 páginas do livro? Resultam de “muitas coisas que nos vão contando pelo caminho, que ficam guardadas e surgem mais tarde, transformadas pela lente da imaginação, da experiência e da pesquisa”.

“Também vou buscar temas à pintura, a uma figura que salta de um quadro e eu quero trazê-la para o real”.

Uma das presenças mais fortes nas histórias de Matilde Campilho é a natureza, o que a escritora justifica pela impossibilidade de não se ser tocado por essa “existência permanente”.

“Sinto sempre isso na minha pele. Durante a quarentena – o livro foi escrito antes mas é impossível não pensar nisso agora -, quem foi para casa na cidade talvez tenha sentido mais o regresso dessa presença: as cidades quietas assemelhavam-se a outros lugares do mundo, onde a natureza surge em todo o seu esplendor e se ouve o sopro do vento e o canto dos pássaros”, diz a autora.

A família, o jogo, a pintura, os segredos, as vidas humanas, os animais são outros temas recorrentes em “Flecha”.

Alguns deles encontram-se em histórias como: “A avó cura a queimadura na perna da sua neta. Entre gestos curtos e palavras de amor, ela derrama na ferida a seiva de um cato baboso”; “A rapariga no quadro, toda vestida de branco e com uma galinha presa ao cinto, não para de brilhar nem de rodar dentro da luz”; “Nove homens jogam à malha nas traseiras de uma casa de província”; “A meio da noite, depois de muitas horas de suor e comunhão, Gabriel passa batom vermelho na boca de Aurora”.

Inevitavelmente, também o mundo onírico está diluído nestas histórias, ou não fizessem os sonhos “parte do mundo: todos existimos a dormir e o sonho entra sem pedir licença”.

A autora fala disto no final do seu livro: “Basta que fechemos os olhos para trepar as escadas que vão dar ao sonho. Aí, nesse outro território, qualquer um de nós entra sozinho. O terreno onírico é fértil em imaginação, de alguma maneira também em memória, em invenção, mas mais ainda em instrução”.

Embora coloridas, como se de pinturas se tratasse, as histórias de “Flecha” encerram em si também algo de nostálgico, solitário e triste, uma mescla de luz e sombra, que é o que Matilde Campilho diz ser, como o é a própria vida.

Numa das suas histórias, escreve simplesmente: “Um barco navega sozinho no Oceano Índico há vários dias. Todos os tripulantes estão mortos”.

“A vida tem essa luz e essa sombra. Por isso gosto de ouvir contar histórias dos mais velhos. As pessoas mais serenas e mais velhas são as que aceitam a existência da luz e da sombra. A vida ora traz uma ora traz outra, é uma luta diária”, afirma.

Confessa a influência profunda que as artes têm na sua escrita e em particular para este livro contribuíram leituras como “Génesis”, “Ilíada”, “Moby Dick” e “A Divina Comédia”, entre outros, porque gosta de criar “coisas que conversam com os clássicos da literatura”.

Para além da literatura, também a pintura a influencia, em particular a figurativa, “que conta uma história”, entendida de forma diferente por quem olha para ela.

Em primeiro lugar nas influências está “a arte suprema, que já existia antes da literatura: a música, que acompanha o ser humano, desde que [nasce] até que [morre]. Há sempre uma canção”.

Para Matilde Campilho, a relação com a música é “uma coisa muito física”, “a música tem um vibrar que vem direto ao vibrar do corpo, e do coração”.

Questionada sobre como se deu a passagem da poesia para a prosa, explica que foi algo que aconteceu naturalmente, em consonância com o que lia na altura.

“Quando escrevi ‘Jóquei’ lia muita poesia, mas nestes anos que entretanto passaram fui lendo cada vez menos, porque os tempos assim o pediam, e procurei coisas mais concretas, como ensaios e ficção. Naturalmente, foi por aí o meu caminho”.