A peça começa por denunciar o “coma cis-colonial em Portugal” e convida à reflexão sobre o “privilégio cisgénero”, enquanto passa por vários relatos “em torno do sexo, do género e do desejo”.
Parte das histórias de elementos da equipa, mas também de relatos que integram o Arquivo Gis, “um espaço de documentação organizado por Hilda de Paulo, cujo intuito é o de trazer para a luz do dia as representações pessoas trans de Portugal”, criado em homenagem a Gisberta Salce, lê-se na descrição do espetáculo.
Trata-se de “um encontro para a gente perceber a grande ficção que a gente é, e a grande ficção que é o mundo em que a gente vive”, explica à Lusa a artista transfeminista.
“É reivindicar a nossa presença. Podemos falar por nós mesmas. Em séculos e séculos são pessoas cisgéneras falando por nós, sempre num sentido de objetificação. Por isso a redução para a genitália, ou que a pessoa trans é menos intelectual. São reflexos muito comuns ainda hoje. Este espetáculo, sim, é uma reivindicação deque podemos falar por nós”, concretiza.
Hilda de Paulo defende que “as pessoas cisgéneras tendem a achar que são universais”, um fenómeno que também acontece com “pessoas brancas, que tendem a universalizar a própria branquitude”.
“Quando isto é colocado como universal, é tratado como normal, verdadeiro, correto, e o que está fora é visto como anormal, não verdadeiro”, prossegue.
Com “O Que Vem Depois da Esperança?”, uma performance-palestra-oficina que parte de histórias que recolheu através do Arquivo Gis e de textos de Ave Terrena, quer mostrar que “somos ‘todes’ ficções políticas encarnadas”.
“É engraçado pensar que na plateia vou ter pessoas cis, mas também pessoas trans e ‘outres’. Tem esse sentido didático, é claro, mas é também pensar nessa história e cultura trans de Portugal, partindo de Portugal para Portugal. Poderia, por exemplo, falar que seria uma história e cultura portuguesa, mas não é, porque existem outras nacionalidades nesta terra”.
Essa é uma questão que importa, porque, frisa, “a transfobia também é um trauma colonial, como a homofobia também pode ser”.
“Quando a gente vai pensar nesse ordenamento de sexo, género e desejo, mais ou menos nesse período de invasões, tem-se um mapa, digamos, um planeamento do que esses corpos têm de ser. Por isso, tem até uma parte que fala que homem e mulher são categorias ciscoloniais”.
Exemplo disso é o facto de que, “quando os portugueses chegam ao Brasil, as pessoas eram descritas como machos e fêmeas”, contrastando com os homens e mulheres do país colonizador.
“A colonialidade também produz um tempo estático, parece que nada muda”, considera, acrescentando que o conceito de homem e de mulher “não faz sentido noutras comunidades como faz na nossa”.
Com este trabalho, quer mostrar que “o género produz formas de dor e de violência não só para pessoas trans, para pessoas cisgéneras também”.
“Acho que vivemos num tempo que ecoa, um tempo desde o passado todo mencionado que ecoa no tempo presente. O tempo de colonialismo, de produção de guerra, de edifícios alçados sobre vários corpos, isso reflete-se ainda hoje no nosso tempo”.
Hilda de Paulo é responsável pelo conceito e pesquisa para este espetáculo em que assume a direção artística, a encenação e os figurinos, contando com a assistência de encenação, direção de arte e cenografia de Tales Frey.
Para a dramaturgia, trabalhou com Ave Terrena.
“O Que Vem Depois da Esperança?” chega à cena esta quinta-feira, na mala voadora, no Porto, e tem marcadas récitas para sexta, sábado e domingo, sendo que a sessão do último dia terá interpretação em língua gestual portuguesa.
Esta performance-palestra oficina é interpretada por Bárbara Sá, Gonçalo Albuquerque, Gui Gaspar, Gui Silvestre e Tiago Aires Lêdo, do Teatro Universitário do Porto, e por Hilda de Paulo.
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