Em 1996, "Lamb", o álbum de estreia do projeto de Andy Barlow e Lou Rhodes, foi um dos muitos a juntar-se à lista de novas tendências da música de dança e também daqueles rotulados como trip-hop, depois de nomes como os Massive Attack, Tricky ou Portishead terem ajudado a consolidar esse (então) novo género. Mas esse é também um rótulo que a dupla de Manchester hoje rejeita, e com alguma razão, porque o que se escutava no seu primeiro disco não se limitava a paisagens densas e claustrofóbicas, oriundas do dub e ensaiadas pelas bandas que cunharam o chamado som de Bristol.

Ele, produtor intrigado pelas linguagens do drum n' bass e do breakbeat, e ela, cantautora inspirada por heranças folk, tentavam antes juntar esses universos aparentemente díspares num formato canção que aceitava ainda ecos do jazz, num cruzamento acústico e eletrónico que, sim, também passava pelos ambientes sedutores e/ou sinuosos do trip-hop, mas tinha horizontes mais vastos.

Lamb

Que os Lamb sejam hoje recordados por muitos, às vezes apenas e só, como a banda de "Gabriel", êxito inesperado que se tornou ubíquo em Portugal já na viragem do milénio, acaba por ser irónico e sobretudo injusto, ao refletir tão pouco daquilo que os seus primeiros álbuns tinham para oferecer.

Felizmente, 21 anos depois, "Lamb" volta a ganhar nova vida, agora em palco, ao estar no centro da mais recente digressão do grupo, e com direito a ser interpretado ao vivo na íntegra pela primeira vez - na linha de revisitações recentes que têm agraciado outros álbuns emblemáticos da segunda metade dos anos 1990, curiosamente também em domínio eletrónico, como o disco de estreia homónimo dos Garbage ou "Guia Espiritual", dos Três Tristes Tigres.

Algumas canções do álbum até tiveram a sua estreia absoluta ao vivo nesta digressão, como Lou Rhodes assinalou no início do concerto no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, esta terça-feira, depois de uma atuação no Coliseu do Porto na véspera. E tal como também tinha ocorrido na Invicta, o espetáculo na capital recordou os temas de "Lamb" pela ordem do alinhamento do disco, numa daquelas propostas irrecusáveis para qualquer fã.

A corrida à sala lisboeta, no entanto, não repetiu a adesão em massa de outros tempos - os tais vincados pelo sucesso de "Gabriel" ou episódios anteriores, quando a dupla já era uma banda com um culto assinalável por cá. E o facto de o Coliseu dos Recreios estar (apenas) bem composto, mas longe de esgotado, não deixou de ser algo estranho tendo em conta que os Lamb já não atuavam por cá desde 2011, quando apresentaram o álbum "5" no Centro Cultural de Belém.

Em compensação, se nessa visita anterior tinham assinado um concerto demasiado curto, com pouco mais de uma hora de duração, na mais recente apresentaram uma atuação tanto maior, com quase o dobro do tempo, como melhor, ao apostar num alinhamento mais forte e defendido por mais colaboradores (a dupla fez-se acompanhar de quatro músicos, entre as cordas, percussão e sopros).

Não há amor como o primeiro

Se houvesse dúvidas de que "Lamb" ainda continua a manter-se um álbum de recorte superior, esta foi a ocasião para as tirar. Não que o concerto se tenha limitado a ser uma mera transposição a papel químico do que se ouve no disco, antes pelo contrário: os arranjos surgiram quase todos renovados sem comprometerem a estrutura das canções, numa atualização sonora subtil que mostra como as novas tendências de 1996 não têm de soar anacrónicas em 2017.

"Lusty", "God Bless" ou "Cotton Wool", que abriram a noite, são grandes canções em qualquer época e das que expõem de forma mais evidente o contraste entre a faceta humana e maquinal da música dos Lamb, com a aparente fragilidade de Lou a medir forças com a energia cinética disparada por Andy. Mas a voz nunca ficou submersa na teia instrumental, tanto das programações e teclados a cargo da metade masculina da dupla como da presença igualmente habitual da bateria ou do contrabaixo (este último a reforçar a aproximação ainda mais vincada ao vivo a domínios do jazz e a fazer esquecer quaisquer vestígios de trip-hop em momentos como o ótimo instrumental "Merge").

Entre as estreias em palco contou-se "Zero", canção que a vocalista confessou ter sido das mais difíceis de revisitar por se ter inspirado na perda de uma criança. "Mas agora tenho duas crianças mais altas do que eu", acrescentou com um sorriso estampado, ao apresentar um tema que encara hoje como menos sombrio do que há duas décadas. E foi mesmo dos episódios mais bonitos da noite, dispensando, tal como na versão gravada, grandes adereços além da guitarra acústica e de elementos eletrónicos muito discretos. Outra das estreias, e também das melhores recordações, foi "Feela", o último tema do alinhamento de "Lamb" e o mais minimal, momento-chave para confirmar que a voz de Lou pouco ou nada mudou ao longo dos últimos 21 anos.

Ainda assim, a faixa mais celebrada do disco foi, provavelmente e sem surpresas, "Górecki", single que chamou as primeiras atenções para a música dos Lamb e está entre os seus temas mais populares. E não é difícil perceber porquê: contém a fusão perfeita do que torna o duo singular, partindo da faceta intimista de Lou antes de se render a um crescendo de euforia instrumental e dançável servido por Andy. Ao vivo, o produtor entregou as programações a um colega para se dedicar à percussão, tal como no videoclip do tema, numa das muitas ocasiões em que instigou reações bem visíveis e audíveis do público - ao longo da noite não deixou de pedir gritos, aplausos e braços no ar, com o entusiasmo de um adolescente que vive a sua primeira digressão.

O salto de "Lamb" para o palco só não foi tão conseguido em "Trans Fatty Acid", o que não quer dizer que tenha corrido mal. A versão mais musculada, com um acesso rock inesperado na dupla, até foi muito bem acolhida pelos espectadores, mas ainda deixou saudades da original, muito mais implosiva, longa e arrepiante, com uma aura industrial que o concerto nunca chegou a sugerir.

E depois de "Lamb"?

Uma atuação apenas centrada em "Lamb" já seria mais do que suficiente para justificar a ida ao Coliseu, sobretudo quando o rasgo do disco teve eco na postura dos músicos, mas a festa continuou, e bem. Antes de Lou regressar a palco, então com um novo vestido dourado e outro chapéu excêntrico q.b., Andy e os outros músicos iniciaram uma viagem pelos discos seguintes com o instrumental "Angelica", um dos momentos altos de "Between Darkness and Wonder" (2003), ancorado no piano e em texturas eletrónicas.

Nesta segunda fase do concerto, o difícil era escolher, uma vez que a discografia dos Lamb conta com seis álbuns. E apenas o quinto, "5", ficou de fora de uma viagem que incluiu a muito aplaudida "What Sound", a explosão drum n' bass de "Little Things", tão vertiginosa hoje como em 1999, e "Ear Parcel", um dos instrumentais mais populares, a convocar uma nova e vibrante aliança entre trompete e contrabaixo depois de "Merge".

Depois das recordações, ainda houve espaço para mais estreias: as de temas do álbum mais recente dos Lamb, "Backspace Unwind", de 2014, que nunca tinha chegado a ser apresentado em Portugal. "We Fall In Love", "As Satellites Go By" e a faixa-título estão já muito longe do lado cru e exploratório de "Lamb" e mostram a dupla a aderir a estruturas mais convencionais, mas a sua eficácia ao vivo foi inegável, com boa parte do público a deixar-se contagiar por uma sonoridade sintética e virada para as pistas.

É também por aí que segue "Illumina", a nova canção da dupla, uma boa confeção de pop eletrónica que teria encerrado o concerto caso não faltasse o encore a cargo da inevitável "Gabriel". "Não podíamos deixar de tocar esta", assumiu Lou. E não podiam mesmo, como se viu pela reação dos muitos que se deixaram embalar pelo tema mais icónico dos Lamb, além do mais aguardado por uma fatia significativa do público. Mas se o final não guardou surpresas, antes de lá chegar o concerto soube conciliar o passado e o presente sem se render à nostalgia nem tentar gritar a novidade, quase sempre com canções muito acima da média. Que fossem assim todas as veteranias em cenário pop...

Fotos: Ana Castro

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