O ponto de partida é a peça de Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière, adaptada pelo dramaturgo britânico Martin Crimp e traduzida pelo poeta e tradutor Daniel Jonas, que se estreia na sala principal do Teatro Municipal Joaquim Benite (TMJB), em Almada, no próximo dia 29 de abril.

“Eu nunca fiz nenhuma peça de Molière e de repente 'topei' com esta versão do Martin Crimp e fiquei cheio de vontade de a fazer, precisamente por ser um desafio duplo. No fundo era Martin Crimp, que não fez só uma tradução, mas uma adaptação para os nossos dias, e eu achei que era muito interessante fazer isso, porque de alguma maneira é um texto que já se insere numa história da história do teatro, e Alceste é como qualquer outro herói da dramaturgia universal – como Hamlet ou Antígona – um personagem incontornável”, disse à Lusa Nuno Carinhas.

No centro daquela que é a mais famosa comédia de Molière, de 1666, está Alceste, o misantropo, e o “seu intenso conflito entre a conformidade e a inconformidade”, aqui atualizada na versão de 1996.

Alceste abomina a hipocrisia a as calculadas e caluniosas piadas dos tagarelas. Depois de atacar contundentemente Covington – um crítico de teatro que pensa que consegue escrever peças de teatro –, Alceste decide visar Jennifer (novo nome de Célimène), a mulher que ama, mas a sua determinação em dizer a verdade pode mostrar-se mais destrutiva do que o instinto para a evitar.

Falando sobre as principais diferenças entre as duas versões, Nuno Carinhas destaca desde logo as personagens, cujos nomes não importam na peça de Molière e que aqui surgem como personagens novas, embora com alguns paralelismos com a peça a original.

“Martin Crimp faz passar esta sua versão numa suíte de um hotel de luxo em Londres, no final dos anos 90, e a apaixonada de Alceste é uma jovem americana de 22 anos que chega, que tem imenso sucesso tanto no teatro como no cinema, e pela qual ele se apaixona. A partir daí temos lançados os dados de uma contemporaneidade que tem a ver com os ‘mass media’, que tem a ver com a propagação dos mitos icónicos de uma forma veloz, de alguma maneira pensando naqueles 15 minutos de fama de que falou Andy Warhol, em que há que assegurar essa manutenção”, contou.

Depois, há “toda a entourage que anda à volta dela e que a visita: o agente, um colega, ator também, que anda à procura de fama, a sua professora de interpretação e o amigo de Alceste que também reproduz um pouco a filiação que tem na peça de Molière. E são essas personagens, mais um crítico de arte que está a preparar um guião para uma peça horrível e que Alceste destrói, e tudo isso é o ambiente que se vive”.

No quinto ato, há uma transmutação, uma espécie de uma festa temática, que “o próprio Crimp propõe para que entremos à força no século XVIII”, e, portanto, o quinto ato passa-se nessa festa, nesse recuar no tempo”.

No entanto, Alceste recusa-se, não se quer disfarçar, diz que não entra em espetáculos de época.

“É muito interessante sempre este vaivém entre uma época e outra época. E obviamente que os assuntos que se discutem são os nossos de hoje em dia, em relação ao poder, em relação aos políticos, em relação ao ‘star system’, em relação à fama, em relação à ética, em relação à corrupção e por aí afora”, descreveu o encenador.

Para Nuno Carinhas, esta versão foi um desafio, mas foi precisamente esse desafio que o motivou, porque todos “esses sinais eram os fundamentais” para querer encenar a peça.

“Era absolutamente essencial fazer esta versão e não a de Molière, porque esta é muito mais desafiante e contém nela as duas versões: a de Molière e esta de Martin Crimp, a que se vem juntar um terceiro autor, neste caso da tradução, que é a do poeta e tradutor Daniel Jonas”.

“Esta versão concilia os arcaísmos da linguagem, como os mistura com ditos do dia a dia. Portanto não há tempo, digamos, não há um tempo presente nesta versão, é um vaivém de linguagem absolutamente genial”, acrescentou, destacando aqui o trabalho dos atores, que descreve como “os heróis neste momento do texto”.

O espetáculo passa-se todo num ambiente escuro, em que, num palco construído dentro do palco, toda a cena é preta, incluindo os móveis.

O chão é de 'carpélio' preto (alcatifa com pêlo alto que se usou muito nos anos 1960) e, no fundo, há uma grande parede com 4,5 metros de altura em ‘capitoné’ (forma de almofadar que têm algumas cabeceiras de camas e sofás, com um botãozinho), também preto, descreveu Nuno Carinhas, desvendando um pouco do cenário.

“Passa-se numa espécie de caixa de bombons funérea, porque é tudo preto, mas luxuoso, decadente e kitsch. É esse o ambiente onde tudo isto se passa: uma suíte de um quarto de hotel”, acrescentou.

O espetáculo conta com as interpretações de André Pardal, Ivo Alexandre, Ivo Marçal, João Cabral, João Farraia, Leonor Alecrim, Pedro Walter, Teresa Gafeira e Tânia Guerreiro, e vai estar em cena até dia 22 de maio.