O primeiro romance da escritora Toni Morrison, sobre a vida de uma rapariga afro-americana, e um dos livros mais banidos atualmente das escolas norte-americanas, por tratar temas como racismo, incesto e abuso sexual, chega pela primeira vez a Portugal.
A escritora norte-americana Toni Morrison, primeira mulher negra a receber o Prémio Nobel da Literatura, em 1993, estreou-se como autora pouco antes dos 40 anos, em 1970, com este romance, “O olhar mais azul” ("The bluest eye”, no original), um estudo sobre raça, género e beleza, temas que se tornariam recorrentes nas suas obras.
Apesar de ter sido escrito há mais de 50 anos, e de outros livros da autora estarem publicados em Portugal, este romance mantém-se inédito até dia 16 de março, data em que chegará às livrarias portuguesas, numa tradução de Tania Ganho e edição da Presença.
Toni Morrison, que se destacou literariamente por romances fortes que relatam as experiências de mulheres negras nos Estados Unidos durante os séculos XIX e XX, aborda neste primeiro romance a história de infância de uma rapariga negra chamada Pecola, que desejava ter olhos azuis e que foi violada pelo pai.
Situada no Ohio da década de 1940, a narrativa acompanha uma rapariga pequena, pobre, desprezada e negra, a de pele mais escura de toda a escola, que todas as noites reza para ter olhos azuis, como as raparigas brancas, como as bonecas de brincar, como as atrizes dos filmes.
Constantemente olhada como "feia", Pecola desenvolve um complexo de inferioridade, que a leva a alimentar aquele desejo irrealizável.
Porém, este desejo representa muito mais do que isso no primeiro romance de Toni Morrison, é o corolário de algo mais fundo, visceral e maior, como explica a autora no prefácio do livro, que nasceu de uma conversa mantida com uma amiga de infância.
As duas tinham acabado de entrar para a escola primária e a amiga disse-lhe que queria ter olhos azuis, um desejo que tinha implícita a “autoaversão racial”.
“O olhar mais azul” foi a tentativa de Toni Morrison de “dizer alguma coisa acerca disso”, explorando no romance a agressão social e doméstica que pode levar uma criança a desmoronar-se.
Para tal, criou “uma série de rejeições, algumas delas banais, outras excecionais, outras ainda monstruosas”.
Por trás desta história estava inicialmente uma outra ideia: as consequências trágicas e debilitantes de se aceitar a rejeição como legítima, como autoevidente.
“A morte da autoestima pode ocorrer rápida e facilmente nas crianças, antes de o seu ego ter pernas para andar, por assim dizer. Alie-se a vulnerabilidade da juventude a pais indiferentes, a adultos desatentos e a um mundo que, pela sua linguagem, leis e imagens, reforça o desespero, e tem-se meio caminho andado para a destruição”, escreve Toni Morrison.
O objetivo do seu primeiro livro (que começou a escrever porque se sentia sozinha com os dois filhos, em Nova Iorque, como disse em entrevista ao The New York Times, em 1979) era entrar na vida da pessoa com menos probabilidades - devido à sua idade, género e raça - de resistir a forças tão prejudiciais.
Criou então a história de Pecola, para explorar temas como o conceito de beleza imposto, a voz truncada das mulheres, a ascensão social viciada ou a infância demasiado cedo perdida, em que “a voz de uma criança negra ecoa, poderosa e inalterada, no século XXI”, descreve a editora.
O romance é contado do ponto de vista de Claudia MacTeer, a filha dos pais adotivos de Pecola, em diferentes fases da sua vida.
Há ainda uma narrativa omnisciente feita na terceira pessoa que inclui a inserção de narrativas na primeira pessoa.
Os temas controversos do livro sobre racismo, incesto e abuso infantil levaram a numerosas tentativas de banir o romance das escolas e bibliotecas nos Estados Unidos, a última das quais, ocorrida no final de janeiro deste ano, no condado de Pinelas, na Florida, por ação de uma mãe cristã, que acusou as escolas públicas de serem “campos de doutrinação marxista”.
Segundo o jornal Daily Mail, esta mãe e professora, que teve conhecimento do livro através de um dos filhos que o estudava no curso de literatura avançada, manifestou-se "chocada por adultos exporem crianças de 15 anos à pedofilia" e às "descrições explícitas de atividades ilegais" constantes do livro.
Como consequência, “O olhar mais azul” foi retirado das salas de aula e bibliotecas da Florida, reforçando uma tendência já existente de banimento desta obra.
Segundo dados do PEN América, “O olhar mais azul” foi o quarto livro mais proibido nos Estados Unidos, no ano letivo de 2021-2022.
Nascida em 1931 em Lorain, Ohio, Toni Morrison formou-se em Língua Inglesa e lecionou em várias universidades, tendo trabalhado também como editora na Random House, num papel que lhe permitiu divulgar outros nomes da literatura afro-americana.
Depois do seu romance de estreia, publicou "Sula" (1973), "Song of Solomon" (1977), "Tar Baby" (1981) e "Beloved" (1987), todos eles dando voz a personagens negras e convocando questões relacionadas com racismo, segregação e minorias.
Além do Prémio Nobel da Literatura, Toni Morrison foi também distinguida com o Prémio Pulitzer, em 1988.
Em 2012 foi condecorada com a medalha da Liberdade pelo então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama.
Autora ainda de ensaios, livros para crianças e teatro, Toni Morrison publicou o último romance, "Deus Ajude a Criança", em 2014.
De Toni Morrison estão publicados vários títulos em Portugal: "Beloved", "Deus ajude a criança", "A Dádiva", “A nossa casa é onde está o coração” e “Love”, todos editados pela Presença, embora alguns títulos tenham conhecido edições anteriores, nomeadamente da Difusão Cultural e da Dom Quixote.
Toni Morrison morreu em agosto de 2019, aos 88 anos, em Nova Iorque.
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