Baseado no texto homónimo do escritor e argumentista Pedro Goulão, que venceu no ano passado a segunda edição do Prémio Miguel Rovisco - Novos Textos Teatrais, atribuído pelo Teatro da Trindade/Inatel, o espetáculo vai estar em cena até 24 de outubro, e conta com as interpretações de Mafalda Lencastre e Pedro Lacerda.

A história é sobre um pai e uma filha, desavindos há anos: ele, um famoso artista plástico, que pôs sempre o seu trabalho à frente da família; ela, uma comediante de ‘stand up’, que usa o humor como uma espécie de terapia para lidar com o abandono do pai.

A peça passa-se toda num quarto de hospital – o cenário é despojado, com apenas uma cama, uma cadeira e um banco –, onde o pai está internado com um cancro terminal, e que a filha amiúde visita, para se despedir, sem deixar nada por dizer.

As cenas são estes breves encontros e desencontros, que se dão durante o horário de visita, e explora temas como a morte, a redenção, a família, a arte, o humorismo e as refeições de hospital.

“Entrei nesta visita pelo lado da tragédia, em vez de ter entrado pelo lado da comédia. Está muito longe de ser comédia pura, é uma comedia com muitos indicadores trágicos, e eu entrei pelo lado da tragédia, porque o que eu acho que é subtil no texto do Pedro é que a tragédia se transforma rapidamente em acervo cómico e, portanto, quanto mais instalada e visível estiver a tragédia, mais força depois tem a comédia”, disse João Reis à Lusa.

“Este texto, para mim, funcionou um bocado como uma sonata com vários andamentos entre a tragédia e a comédia (não sei se o Pedro quando ouvir isto vai gostar). Uma das coisas interessantes é ser eu a pessoa que inscreve pela primeira vez um ponto de vista sobre o texto, a partir do espetáculo que construí, porque obviamente outro encenador teria uma visão diferente”.

Para João Reis, os principais desafios que se colocaram foram o cenário limitativo, manter um ritmo que não tornasse o espetáculo repetitivo e aprofundar bem o tema das relações familiares, e a forma como se podem transformar perante a iminência da morte.

“A ação decorre num quarto de hospital e eu criei um dispositivo cénico que me permitisse deslocar a ação para vários pontos no quarto para dar outras dinâmicas às cenas e aos diálogos, porque a matriz do texto anda sempre à volta do mesmo assunto, porque pai e filha são muito parecidos, têm um humor muito subtil”, contou o encenador.

As cenas vão-se deslocando dentro daquele mesmo espaço através da mudança da disposição da cadeira e do banco, onde as duas personagens se vão sentando, da deslocação, uma ou outra vez, da cama de lugar, da introdução esporádica de uma cadeira de rodas, ou até do fechar da cortina em torno da cama, nomeadamente para dar lugar a uma cena de ‘stand up’, a única que se passa fora do hospital.

“A minha dificuldade foi contrariar o ritmo para o qual a peça induzia sistematicamente e que eu tive medo que se pudesse tornar repetitivo. Tentei contrariar com a banda sonora, com o lado mais trágico da peça, e depois também me interessava muito explorar o vínculo familiar, como é que ele se manifesta no percurso artístico e também se é verdade ou não que, perante o aproximar da morte, pode haver uma espécie de acerto de contas com o passado e das coisas que ficaram por resolver e por ser ditas”.

Outro aspeto “interessante” que João Reis destaca no texto de Pedro Goulão é a evocação que vai buscar ao filme “Johnny Guitar”, de Nicholas Ray, a ideia do “mente-me, diz-me o que eu quero ouvir”, como se as personagens, sempre amargas e sarcásticas, paradoxalmente, só conseguissem dizer a verdade mentindo.

“Acho que eles estão mortinhos por cair nos braços um do outro, mas há coisas por resolver. Isso faz com que a filha a determinada altura da peça diga: ‘Tudo bem, foste um excelente pintor, mas as tuas noitadas e os dias infindáveis no atelier fizeram de ti um péssimo pai, marido e avô’”.

A “preocupação” de João Reis era “tentar passar por estes temas todos, explorá-los de forma justa e sensata, não esquecendo sempre que, no fundo do túnel, há um registo de comédia e humor, ainda que negro e corrosivo”.

Mafalda Lencastre e Pedro Lacerda sustentam todo o espetáculo, mantendo a tensão permanente, o ritmo dos diálogos e a alternância entre o humor satírico e momentos de intensidade dramática.

A escolha dos atores não foi aleatória, explica o encenador, adiantando que nunca tinha trabalhado com nenhum dos dois.

“Escolhi estes atores porque sabia ao que ia, sei a qualidade que eles têm e sabia que eles me iam dar a dimensão da tragédia no texto, porque eu acho que seria mais fácil encontrar atores que estariam mais próximo do suposto registo de comédia, para o qual o texto nos empurra ali e aqui, mas eu escolhi estes dois atores, porque sabia que se iam aproximar da visão que eu tinha do texto”.