Verão é sinónimo de festivais: de norte a sul, passando pelas ilhas, entre junho e setembro são dezenas os eventos que atraem milhares e milhares de pessoas. Em 2019, de acordo com a Associação Portuguesa de Festivais de Música, realizaram-se 287 festivais de música em Portugal, que receberam mais de dois milhões de pessoas. Somando bilhetes, transporte e outros gastos, os festivaleiros contribuíram num só ano com 18 mil milhões de euros brutos para a economia nacional.
Mas 2020 trouxe outro cenário: pela primeira vez em décadas, a música não vai juntar amigos e famílias em recintos ao ar livre. O Parque da Bela Vista, a Praia Fluvial do Tabuão, o Passeio Marítimo de Algés, a Zambujeira do Mar, o Parque da Cidade do Porto, a Praia do Meco, a Antiga Seca do Bacalhau de Gaia, o Parque Ribeirinho de Amarante ou a Aldeia de Cem Soldos não se vão encher de milhares de festivaleiros que todos os anos vivem novas histórias e aventuras ao ritmo da música.
Tudo devido à pandemia COVID-19: os "festivais e espetáculos de natureza análoga" estão proibidos em Portugal até ao dia 30 de setembro, levando ao reagendamento dos eventos que conquistam anualmente milhares de espectadores.
Para a geração que nasceu nos anos 1990, é quase impossível imaginar um verão sem festivais. Em conversa com o SAPO Mag, Álvaro Covões, diretor da Everything is New, promotora do NOS Alive, lembra que a "nova era de festivais" em Portugal começou em 1995. "O meu filho André nasceu no dia 28 de junho de 1995 e o meu primeiro festival foi o Super Bock Super Rock no dia 7 e 8 de julho. Portanto, ele é da geração dos festivais - vai fazer 25 anos e vai ser o primeiro ano sem festivais", diz.
João Carvalho, diretor da promotora de eventos Ritmos, que é responsável pela organização do Vodafone Paredes de Coura, no Porto, também está ligado ao mundo dos festivais de verão desde o final do século passado e não esconde a tristeza. "Se é uma tristeza para um promotor, imagina a tristeza que é para um promotor que gosta de música, como eu. Eu tenho uma dupla tristeza: a de ver o meu negócio parado e de ver o meu prazer parado", confessa ao SAPO Mag o responsável máximo pelo festival que se realiza anualmente em Paredes de Coura.
"Costumo dizer aos meus sócios e amigos que ainda não desliguei a ficha - é todo um luto, mas só quando chegar o momento é que essa tristeza, que já sinto há meses, se vai transformar numa tristeza ainda maior. Resumindo e concluindo, é um ano triste e fazemos isto há 28 anos. Já não me recordo de um verão sem um festival. Nas minhas memórias, quando penso no meu verão, já não me lembro. São mais anos a fazer o festival do que a não o fazer", recorda o diretor do festival minhoto.
Jorge Lopes, organizador do MEO Marés Vivas, em Vila Nova de Gaia, também não tem memória de um verão sem música. "É dramático, é dramático. Trabalho nesta área há 21 anos - comecei em 1999, em Vilar de Mouros - e sempre tive festivais no verão. Este vai ser o primeiro ano que não há festivais e estamos a tentar reinventar alguma coisa para garantir que há alguma animação. Vamos criar eventos que tenham o mesmo cariz, mas de outra dimensão e com outras regras", conta ao SAPO Mag.
Lu Araújo, criadora e diretora do Mimo Festival, que se realiza anualmente no Brasil e em Portugal (Amarante), partilha do mesmo sentimento. "É triste. Eu, por exemplo, e não só no caso do MIMO Amarante, faço festivais anualmente desde 2004, já são 17 anos - já cheguei a fazer oito edições no mesmo ano, desde de pequenos circuitos a festivais. Mas Amarante tem uma coisa encantadora", começa por frisar. "Há dor até porque a última edição foi sensacional, acho que encontrámos o equilíbrio. Estou a morrer de vontade que esse momento aconteça de novo. E estou triste por não ser possível fazer este ano, mas acho que vamos voltar no próximo ano e com todas as medidas de segurança", acrescenta.
"Temos futuro e olhámos para o futuro", Roberta Medina
Já Roberta Medina, vice-presidente do Rock in Rio, confessa que a "primeira palavra que descreve o que sentimos na hora de reagendar foi frustração". "Foi extremamente frustrante porque já vínhamos com uma conversa nova, de que o 'Rock in Rio não pára'. Estava tudo a correr bem, tínhamos o cartaz que queríamos, público entusiasmado. Ia ser uma edição muito especial. Foi frustrante, mas acho que a partir do momento em que avaliámos financeiramente, se fazia sentido, quais os impactos, e na hora que decidimos vamos adiar, é em 2021, e é ir em frente. Aí pensámos temos futuro e olhámos para o futuro. Ficámos focados no futuro e isso dá um ânimo diferente à equipa - se ficássemos em dúvida durante muito tempo, isso sim, ia ser mais complicado de gerir. E houve alguma tranquilidade pelo facto de que o que está a acontecer é tão mais grave do que a nossa própria realidade", conta em conversa com o SAPO Mag.
"É um sentimento muito estranho porque ainda não chegámos lá - estamos em junho e no caso do NOS Alive era em julho. Há aqui um sentimento um bocado estranho, mas como já estamos a trabalhar no NOS Alive 2021 parece que não parou, parece uma continuidade. Está longe, mas está lá. Vai ser mais difícil em julho e agosto, aí é que vamos sentir falta. É a primeira vez em 25 anos que não faço um festival, é um sentimento que não sei descrever. Não sei as palavras para descrever este sentimento. Parece mentira, parece um sonho, parece que estamos todos a sonhar: 'de repente acordámos de manhã e sonhámos que este ano não havia NOS Alive'. É uma coisa estranha... também não houve Santo António, é uma coisa estranhíssima, sempre houve Santo António. Este ano de 2020 vai ser um ano marcado por não memórias. Não vai deixar memória", frisa Álvaro Covões, acrescentando que "parece que os bons momentos foram banidos".
Ao SAPO Mag, Lu Araújo acrescenta ainda que o adiamento tem um grande impacto no mundo da cultura. "O maior ganho, o maior lucro do MIMO, é o público - a grande audiência do festival, de pessoas jovens, de pessoas bonitas, que estão abertas a descobrir coisas novas e que arriscam. De repente, perdemos isso tudo. Vamos ter de nos ajustar porque acho que vamos ter mais situações como esta na vida. Este impacto na cultura, faz-nos pensar: a cultura é ar, a gente respira cultura, é como se ela já fizesse parte da nossa essência.
O regresso em 2021: "Nunca preparei as coisas tão cedo"
Com o reagendamento, os promotores estão já a preparar as edições de 2021, estando já confirmados ou reconfirmados vários artistas. "Antes desta entrevista, estava a falar com a minha equipa de booking e a ver que as bandas estão todas a reconfirmar - estavam confirmadas para este ano e estão todas a reconfirmar. Estava a falar de uma banda, a discutir propostas e estava a sentir uma agonia porque determinada banda só tem resposta em julho, e eu estava a pensar: 'Pois, ainda não chegámos a julho e nunca preparei as coisas tão cedo'. Vai passar-se a data do festival e ele não vai acontecer, vamos estar a preparar a edição do próximo ano. É um bocado estranho, é uma sensação um pouco ambígua - sinto felicidade por estar a fechar os nomes, mas depois sinto uma impaciência terrível ao perceber que ainda falta um ano", conta João Carvalho, do Vodafone Paredes de Coura.
Álvaro Covões confirma também que a "maioria dos artistas quer continuar a vir": "Parece que está tudo ao contrário. Também já estávamos a trabalhar 2021 e muita coisa vai ser transferida para 2022... e tudo de 2020 transferido para 2021 e não é só no mundo dos festivais - tínhamos uma grande quantidade de concertos este ano e passou tudo para 2021. É estranho estar em junho de 2020 e ver as coisas empurradas para daqui a um ano e tal".
Para lá do cartaz, o diretor da Everything is New garante que a grande aposta social do festival vai continuar no próximo ano. "Quando criámos o festival, disse que tínhamos de procurar algo que fosse mais real e lancei o desafio interno para que o nosso projeto de responsabilidade social fosse de 'carne e osso'. Fomos ter com o Instituto Gulbenkian de Ciência e criámos uma parceria inédita e que já foi notícia no mundo inteiro... criámos duas bolsas de investigação científica e que existem desde 2007", lembra Álvaro Covões. "Uma das maiores penas, é que este ano não temos fundos para isso, mas em 2021 vamos fazer quatro bolsas e não duas. Estou a dizer isto em primeira mão. Não vamos desistir deste projeto", revelou ao SAPO Mag.
"Não haverá desculpa para um mau cartaz", Jorge Lopes
No caso do MEO Marés Vivas, que já confirmou Jessie J, Anitta e Liam Payne, as negociações com os artistas também estão num bom caminho."A reação da indústria tem sido ótima. Os artistas sofrem do mesmo problema que estamos a sofrer, também estão este ano sem trabalhar e, portanto, para além das digressões que estavam programadas para este ano, há aqueles artistas que poderiam estar programados para o próximo ano. Acredito que para o ano será um ano repleto de grandes artistas e não haverá desculpa para um mau cartaz", frisa Jorge Lopes.
O Rock in Rio Lisboa, que normalmente se realiza nos anos pares, também já anunciou os primeiros nomes para 2021 (Foo Fighters, The National e Liam Gallagher). "Temos a indicação da vontade de renovar, os artistas querem tocar, mas estão dependentes de muitos fatores, de promotores - há muitos detalhes para viabilizar uma digressão. Para fechar uma data de um concerto, as outras datas têm de fazer sentido", lembra Roberta Medina.
Ao contrário do habitual, o festival do Parque da Bela Vista, em Lisboa, vai realizar-se em dois anos consecutivos. "Também estou curiosa em relação ao intervalo de um ano. Vai ser divertido. Acho que operacionalmente a produção vai ser mais fácil - apesar do cansaço, acho que é mais fácil não parar. O grande desafio vai ser a inovação, temos de surpreender o público com conteúdos diferenciados de entretenimento. Temos esse desafio e essa proposta, de sermos uma cidade, um parque temático - sem falar da música, que está sempre garantida. Temos de conseguir criar e a divulgar as novidades muito rapidamente", explica a vice-presidente do Rock in Rio ao SAPO Mag.
Lu Araújo confessa também que está ansiosa e que já tem várias ideias para a edição de 2021. "Estou bastante ansiosa e animada por fazer. Será um outro momento e isso exige um planeamento maior, com mais antecedência, e um diálogo maior com a sociedade, com o Governo. Temos de observar este tempo que estamos a viver. Mas estou cheia de ideias e quero fazer um festival importante no próximo ano - importante para levar à reflexão", sublinha, acrescentando que o objetivo será "promover mais encontros, criar coisas inéditas, concertos que nunca aconteceram e que juntem pessoas diferentes".
Já sobre a programação de 2021 do festival que se realiza em Amarante, Lu Araújo garante que os artistas têm vontade de reagendar os espetáculos. "É uma coisa interessante, é como se saltássemos um ano. A cada ano, a programação tem um sentido e trabalhamos de acordo com o que está disponível no mercado, há uma série de coisas. Claro que vou aproveitar bastante o que já tinha, tinha coisa muito especiais já negociadas para este ano. Mas há coisas que não vão ser possíveis... mesmo dentro da classe artística, temos de pensar nos impactos: quando falámos de um artista mais velho, de um país africano, temos de perceber se da parte dele vai ser possível. São muito detalhes, mas, a princípio, está toda a gente, como dizemos aqui no Brasil, com 'sangue nos olhos' para voltar à atividade", conta.
"O público reagiu bem ao reagendamento", Roberta Medinda
Além dos artistas, a vontade do público em voltar aos festivais também é grande. "Tenho a certeza absoluta de que a próxima edição vai ser estonteante, vai ser uma edição histórica - essa manifestação de vontade de ir no próximo ano, chega-me todos os dias das mais variadas formas. Toda a gente está desejosa e ansiosa que chegue a próxima edição", garante João Carvalho, avançando que pretende ter mais bandas e "criar algum conceito marcante". "Vai ser uma das edições mais bonitas de sempre porque as pessoas estão ansiosas de estarem juntas", frisa.
"O público reagiu bem ao reagendamento. Para terem uma ideia, temos menos de 1% das pessoas que têm bilhete a entrar em contacto connosco - não para reclamar, mas para saber como ia ser. As pessoas estão muito compreensivas", acrescenta Roberta Medina.
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