Contrariando a pontualidade britânica da maioria dos concertos da passada sexta-feira em 15 espaços da Avenida da Liberdade e imediações, a atuação dos Jagwar Ma, no Coliseu dos Recreios, obrigou a uma espera de cerca de 25 minutos. E nesse tempo em que a sala foi ficando quase repleta, fechando a primeira de duas noites da edição de 2016 do Vodafone Mexefest, o público foi ainda obrigado a ouvir Carlão, um dos nomes da iniciativa "Vozes de Escrita", que pretende dar novos palcos à literatura. Mas se outros artistas têm lido textos de escritores da sua preferência, o ex-vocalista dos Da Weasel optou pela letra de um tema do seu projeto Algodão, "O Princípio de Uma Boa Queca", relato gráfico com sexo, drogas e música eletrónica (Daft Punk, em particular) que terá contribuído mais para um surto de vergonha alheia do que para qualquer estímulo à leitura. A espera já ia relativamente longa, não havia necessidade de a prolongar com um pedaço de escrita que estará ao nível da suposta provocação de um episódio da pouco saudosa série "Riscos". Se a ideia era mesmo deixar um retrato cru em torno do sexo, mais valia ter revisitado uma canção como "O Remorso", dos Da Weasel, mais antiga mas também mais pertinente e desconcertante do que uma tentativa juvenil de irreverência.

Felizmente, tirando este aparte rapidamente esquecido graças ao enérgico concerto que se seguiu, o balanço do primeiro regresso do Mexefest foi francamente positivo, pelo menos tendo em conta as atuações não só dos Jagwar Ma mas também Medeiros/Lucas, Nao ou Sunflower Bean. É verdade que o cartaz deste ano não será tão sonante como o de edições anteriores do festival, o que teve reflex no menor alvoroço que se sentiu ao percorrer alguns dos espaços que acolheram as dezenas de concertos desta noite inicial. Por outro lado, também ninguém terá ficado à porta de um espetáculo que fizesse questão de ver, por sobrelotação de uma sala (como ocorreu noutros anos), numa noite mais marcada pela calmaria do que pela correria (as tréguas da chuva ajudaram).

Ainda assim, os artistas deste ano não poderão queixar-se de falta de adesão. Que o digam os Jagwar Ma, uma das bandas mais aguardadas, que fez a festa num Coliseu muito bem composto. E merecidamente, já que o trio australiano fechou a noite com chave de ouro a partir das canções do novíssimo "Every Now and Then" e do anterior "Howlin'", de 2013. A terceira passagem do grupo por palcos nacionais dificilmente terá sido a última, tanto pela considerável quantidade de fãs que já tem por cá - a reação entusiasta a alguns temas não enganou - como pelos que conseguiu a caminho da madrugada, com ritmo a condizer. A combinação de guitarras e eletrónica está longe de ser novidade, mas a banda de Sidney também não parece querer ser especialmente revolucinária. Contenta-se em aproveitar a herança de uns Stone Roses, Primal Scream ou Charlatans enquanto também pisca o olho a alguns conterrâneos - dos esquecidos Delakota aos celebrados Tame Impala - num caldeirão com porções variáveis de acid house, indie rock e psicadelismo devidamente atualizadas - as texturas não escondem a dívida ao passado, mas têm pés assentes no presente. Tanto o vocalista (e às vezes guitarrista) Gabriel Winterfield como o baixista Jack Freedman e Jono Ma, nas programações, se entregaram sem reservas a um hedonismo contínuo e capaz de desenhar um ambiente raver ao fim de um par de canções. Canções como "O B 1" ou "Give Me a Reason", dois dos trunfos de um novo disco mais expansivo e capaz de conquistar outro espaço em palco. Ao longo de mais de uma hora, os Jagwar Ma deixaram uma ótima impressão ao manterem um alinhamento sempre hipnótico, a embalar os espectadores mais resistentes da noite quando não os deixou em modo frenético.

Revelações, confirmações e promessas de regresso

Igualmente ovacionada no Coliseu dos Recreios poucas horas antes, Nao estreou-se em Portugal numa altura em que o seu primeiro álbum, "For All We Know", é cada vez mais apontado como uma das surpresas do ano. E será difícil negar quer a competência que a simpatia da jovem britânica e da sua banda, que viajaram ao longo de uma hora por uma soul sintética dos anos 1980 e pelo trip-hop da década seguinte, influências conjugadas com uma linguagem R&B contemporânea. A mostrar-se convincente tanto nos momentos mais aveludados como nos dançáveis, a voz de "Get to Know Ya" ou "Trophy" não se cansou de elogiar o público, que por sua vez aderiu ao espetáculo de forma praticamente incondicional. Mas também nunca se afastou assim tanto da música de terceiros, de Martina Topley-Bird aos AlunaGeorge, com a desvantagem de ter chegado muito depois deles e de não atingir a inspiração dos seus melhores momentos. Nada que tenha impedido a quase consagração logo depois do estatuto de promessa...

Também da seleção de esperanças, os Sunflower Bean tiveram direito a um dos cenários mais bonitos do festival, ao atuarem na saída superior da Estação Ferroviária do Rossio, com vista para o Castelo de São Jorge. O quadro foi elogiado por Julia Cumming, vocalista e baixista da banda de Brooklyn, que realçou a beleza de Lisboa e a entrega do público. Mas a entrega foi claramente mútua, com o power trio (guitarra, bateria e baixo) a dar uma lição de simplicidade rock com uma segurança que falta a muitos veteranos e que não comprometeu o entusiasmo de quem ainda está a descobrir como é a vida na estrada. Em Portugal pela primeira vez para apresentar o álbum de estreia, "Human Ceremony", que chegou às lojas no início do ano, o grupo surpreendeu mais pela coesão e eficácia do que propriamente pelas canções. Não que estas tenham envergonhado alguém, apenas não permitiram distinguir muito os Sunflower Bean de outras bandas do momento e sobretudo de muitas que estão para trás. A escola Black Sabbath é assumida - tanto pela t-shirt do baterista como pela chuva de riffs intimidantes -, embora o episódio mais surpreendente tenha sido o desvio para terrreno dream pop de "Easier Said", quase balada que deu mais espaço à bela voz de Cumming do que ao caos instrumental. Já Nick Kivlen saiu-se melhor na guitarra do que a cantar, uma vez que o sem timbre não ajuda a colocar a banda num lugar especialmente personalizado. Mas que estes três nasceram para o palco, isso ficou evidente... e com regresso garantido a palcos nacionais.

Guitarras, mas não só, foram também ingredientes do concerto de Medeiros/Lucas na Casa do Alentejo, que ficou entre os iniciais da noite. O projeto de Carlos Medeiros e Pedro Lucas, um dos achados da música portuguesa recente, tem-se destacado pela combinação de tradição e modernidade em discos que partem de sonoridades açorianas para a eletrónica mais vanguardista ou um rock de tempero nem sempre ocidental. Foi assim em "Mar Aberto", a estreia, no ano passado, e assim continua a ser, com novas variações, em "Terra do Corpo", a confirmação, que chegou este ano. Além de mais dois músicos, a dupla contou ainda com Selma Uamusse em "Corpo Vazio", raro tema contemplativo num concerto que não recusou aceder à distorção e a crescendos de intensidade - mesmo que a poesia de Medeiros tenha ficado ofuscada algures lá no meio. Mas a sua voz fez-se ouvir, e bem, no final a cargo de "Canção do Mar Aberto" e da belíssima "Navio", não por acaso temas com sabor a despedida. Este projeto, no entanto, parece ter vindo para ficar.

Além destes nomes, o itinerário da primeira noite do Vodafone Mexefest 2016 ficou ainda marcado por Talib Kweli, Céu, Howe Gelb, Baio ou a homenagem de vários músicos a Dina no espetáculo "Dinamite". O segundo e último dia do festival lisboeta, este sábado, conta com Digable Planets, TaxiWars (o novo projeto de Tom Barman, dos dEUS), Gallant, Kevin Morby, Mallu Magalhães ou Elza Soares, entre muitos outros. Agora escolha.

Foto: Diogo Inácio/World Academy/Vodafone Mexefest