"É aquela figura estranha que está sempre presente", diz Jeff Malmberg ao SAPO Mag a propósito do objeto do seu mais recente documentário. E não falta ambição a "Mickey: A História de um Rato", que percorre as mais de nove décadas de vida da personagem mais popular de Walt Disney.

Com 94 anos assinalados em novembro, Mickey tornou-se "um símbolo da América", sublinha o realizador norte-americano numa mesa-redonda virtual. Pelo caminho, também se impôs como o principal rosto (com orelhas obrigatoriamente associadas) dos estúdios através dos quais conquistou o mundo.

Jeff Malmberg
Jeff Malmberg créditos: AFP

Malmberg aponta que, após um percurso acidentado, nos últimos anos a Disney permitiu que o rato mais famoso da cultura pop "pudesse votar a ser uma personagem, além de todas as outras coisas que é".

O filme estreado em março no festival South by Southwest em Austin, no Texas, e disponível na plataforma Disney+ desde 18 de novembro, propõe um retrato dos triunfos, quedas e reabilitações de um ícone que, acima de tudo, "nos dá a oportunidade de recuperar a alegria que perdemos quando nos tornamos adultos", descreve o realizador.

Um rato para todo o serviço

Da curta-metragem histórica "O Barco a Vapor" a "Fantasia", clássico que o tempo aprendeu a valorizar, passando pelas mais recentes aventuras televisivas que recuperam a irreverência inicial, "Mickey: A História de um Rato" revisita títulos essenciais enquanto mostra as muitas (e por vezes contraditórias) facetas do seu protagonista. Afinal, este rato também foi símbolo bélico (da Segunda Guerra Mundial ao Vietname), sujeitou-se a anúncios publicitários, abraçou valores conservadores e foi abraçado pela contracultura, desempenhou funções de relações públicas mas teve episódios conturbados com acusações de racismo e polémicas como a defesa extrema de direitos de autor por parte da Disney. E a certa altura viu o seu estatuto seriamente ameaçado pela popularidade crescente de Donald ou Pateta, que nunca tiveram o fardo corporativo...

Mickey: A História de um Rato

Ao longo de uma económica hora e meia, o realizador que se tem especializado em documentários - caso dos aplaudidos e premiados "Marwencol" (2010) e "Spettacolo" (2017) - convida a uma (re)descoberta e reavaliação do legado deste ícone, mesmo que admita nunca se ter entusiasmado especialmente por ele.

"Cresci com o Mickey na Califórnia nos anos 1980. Por isso, para mim ele era, basicamente, uma luz noturna e o anfitrião de um parque. Íamos à Disneyland e lá estava ele, mas eu não sabia bem quem ele era. Sabia que era uma personagem de animação, mas surpreendia-me que estivesse no centro da cultura cinematográfica do século passado. Via 300 miúdos com máscaras dele na sala de cinema, mas não percebia porquê", recorda.

Mickey: A História de um Rato

"Nessa altura, em meados dos anos 1980, ele já não era bem uma personagem. Acho que está a voltar a ser agora", defende, dando como exemplo dessa tentativa de mudança a curta "Mickey in a Minute", viagem acelerada pelas várias fases do rato, ou outras animações recentes como "O Maravilhoso Mundo de Mickey Mouse" e séries associadas (que também podem ser vistas no Disney+).

"É um grande passo por parte dos estúdios para retomarem a sua caracterização inicial", aponta. Este Mickey menos polido e menos bem comportado talvez tivesse feito de Malmberg um fã acérrimo na sua infância. "Ele era um produto", lembra o realizador. "Quando fui pela primeira vez à Disneylândia, estava entusiasmado por ir vê-lo, por tudo o que tinha ouvido sobre ele. Mas depois percebi que os meus pais ficaram muito mais entusiasmados com ele do que eu", lamenta. "Parti para o documentário com esse ponto de vista. Não sou um super fã, mas percebo o valor que ele tem e a alegria que provoca. Mas tive inveja de todas aquelas pessoas que tiveram uma experiência emocional com ele".

Mickey: A História de um Rato

Malmberg acabou por voltar à Disneyland já como adulto, e desta vez com outra companhia familiar, quando começou a preparar o documentário. "Uma das primeiras coisas que fiz foi levar lá a minha filha e ver o Mickey pelos olhos dela. Na verdade, ela é uma das crianças que aparecem numa das sequências iniciais. Foi muito interessante. Lá está, o Mickey é, por um lado, algo muito pequeno, mas que todos partilhamos. Não vai resolver os nossos problemas, mas todos o conhecemos e temos um tipo de relação com ele. Acho que há algum poder nisso e, para mim, foi uma forma de voltar a ligar-se a uma ideia de otimismo", salienta.

Do consenso à polémica

As reticências do realizador sobre a figura que acompanha ajudam a fazer de "Mickey: A História de um Rato" um filme muito distante do mero documentário promocional da casa Disney que talvez muitos esperassem (e temessem). Mas também não deixa de ser uma carta de amor à personagem (sobretudo às suas primeiras versões, com eco na mais recente) durante boa parte da sua duração, com potencial para comover fãs dos 7 aos 77.

Mickey

O resultado, no entanto, é mais intrigante quando se afasta da ode e vai para territórios turvos algo inesperados - e ainda por explorar devidamente. "Sempre achei interessante o que não foi falado dentro da própria Disney, em relação ao Mickey. Por isso, era muito importante falar disso neste filme, mesmo que eu não seja seguramente a melhor pessoa para iniciar uma discussão sobre, por exemplo, imagens racialmente insensíveis do Mickey. Mas achei que tinha a obrigação de abrir essa porta e documentar que isso aconteceu", explica.

"Gosto de ver desenhos animados com a minha filha. Acho que alguma da animação inicial é belíssima, mas parte dela, não só da Disney mas de outros estúdios, é extremamente problemática. E como se resolve esse problema? Com um parágrafo [antes do filme]? Conversando com os nossos filhos? Lá está, não me sinto qualificado para dar essa resposta, mas senti-me na responsabilidade de iniciar essa discussão", confessa.