Autora de vários livros de culinária, criadora e apresentadora de programas televisivos muito populares como "The French Chef" (estreado nos EUA nos anos 1960), Julia Child antecedeu em décadas as tendências foodie que dominam boa parte das redes sociais e foi uma figura incontornável na forma como a televisão se relaciona com a cozinha.

Depois de inspirar gerações de potenciais cozinheiros ao longo de mais de 50 anos, a norte-americana falecida em 2004 tem direito a um retrato aprofundado na nova série da HBO Max. Um retrato que dificilmente se confundirá com o do filme "Julie e Julia" (2009), de Nora Ephron, no qual Child foi encarnada por Meryl Streep.

"Vi o filme quando se estreou e foi aí que fiquei a conhecer a Julia", recorda Sarah Lancashire, que interpreta a protagonista, numa mesa redonda virtual com a imprensa na qual o SAPO Mag esteve presente. "Mas não o revi para este papel porque para mim o argumento é a origem de um projeto, tudo o resto parte daí - como a escolha, precisão e ritmo da linguagem", esclarece a atriz britânica que nos últimos anos tem tido papéis de relevo (e muito elogiados) em séries como "Último Tango em Halifax" ou "O Vale da Felicidade". "O nosso tom e escrita são completamente diferentes dos do filme, por isso voltar a ele seria um exercício fútil para esta pesquisa".

Julia

Lancashire conta que as suas fontes de inspiração foram outras. "Vi horas e horas do 'The French Chef', muitas entrevistas, e ela não perdeu nenhuma da sua exuberância nem da sua alegria de viver à medida que foi envelhecendo. Deixei que ela se infiltrasse na minha alma para tentar encontrar a minha Julia", explica.

A atriz assinala que não quis "cair na caricatura nem na simplificação", mesmo que a voz aguda e às vezes estridente, aliada à altura (quase 1,90m) e a uma postura excêntrica q.b. (menos graciosa e calculada do que os parâmetros televisivos da altura) pudessem convidar a isso. "Foi divertido tentar encontrar a sua voz e a sua linguagem corporal", assinala. "Ela sente-se ligeiramente fora do seu ambiente e dar corpo a esse estado é muito estimulante".

A britânica defende que a sua forma de interpretar Child "tem tudo que ver com verdade. Se não parecer verdadeiro, é porque alguma coisa correu mal". E acrescenta que o facto de só ter ficado a conhecer esta referência da culinária numa fase relativamente tardia foi determinante. "Acho que foi mais fácil não ter crescido com a Julia, não ter esse peso nas costas. Ela não fazia parte da cultura popular no Reino Unido, por isso não era parte do meu dia a dia. Isso foi ligeiramente libertador, de certa forma".

Julia

Lancashire elogia a "perspicácia, sabedoria e curiosidade" da mulher que gostou de conhecer com este papel. "É muito otimista em relação ao mundo, transmite uma grande luz", aponta, avançando que na série "também vemos a Julia que está longe das câmaras, que não está ligada, e essa é igualmente importante". "Tentei encontrar o equilíbrio entre as duas", diz.

Da cozinha ao casamento

"Contávamos explorar três ou quatro anos na primeira temporada, mas acabámos por nos centrar apenas num", conta Daniel Goldfarb ("A Maravilhosa Sra. Maisel"), o criador da série. "Decidimos logo ao princípio que queríamos focar-nos nos tempos dela em Cambridge e em Boston, quando basicamente inventou o formato gastronómico televisivo. Lemos muitos livros e entrevistas, vimos muitos programas televisivos, tentámos ler nas entrelinhas e trabalhámos a partir daí", recorda.

"O que nos motivou mais foi o otimismo e determinação da Julia e também o retrato do primeiro casamento moderno. Começamos com um casamento à antiga, um bom casamento à antiga, e no final da temporada tornou-se um casamento moderno. Isso foi muito importante para estabelecer a jornada de oito episódios".

Julia

Entre o drama e a comédia, a série relata parte da jornada mediática da protagonista em paralelo com a sua relação conjugal, que não fica imune às consequências do estrelato. Desde logo pelos reflexos desta mudança de vida na carreira do marido de Julia Child, Paul, interpretado por David Hyde Pierce ("Frasier"). "Fiquei fascinado pelo Paul logo ao ler o piloto, e depois disso ainda mais. É um homem tão conturbado, tão apaixonado, tão difícil, tão talentoso, tão frustrado... Sinto-me frustrado e achei que seria interessante interpretar alguém talentoso", ironiza o ator norte-americano.

"Mas a sério, ele tinha tantos talentos: era cinturão negro no judo, era um ótimo pintor e desenhador, fotógrafo, construiu mobílias. A oportunidade de me aproximar de todas estas áreas e de explorar quem era esta pessoa que conseguia fazer tudo isto mas escolheu, ou aceitou, ficar na sombra desta mulher extraordinária, e com uma relação forte com ela, foi apelativo", justifica, num tom mais sério.

Uma espécie de fábula

Daniel Goldfarb diz admirar a protagonista porque "não pede desculpas por ser como é fá-lo por todas as razões certas. A compaixão dela é evidente. Não finge ser perfeita e permite-se ser divertida, apaixonada, sensual, e deixa transparecer a sua vontade de ensinar". O produtor executivo Christopher Keyser ("Adultos à Força") acrescenta que tanto Julia como Paul "eram pessoas extraordinariamente divertidas. Vieram de famílias conservadoras, mas não eram pessoas conservadoras". "Eram fora do seu tempo e não quisemos perder a essência disso", frisa.

Julia

O norte-americano refere ainda que "o público tem ideia de quem a Julia é, mas não a conhece ao pormenor, e isso permitiu-nos ser imaginativos", descrevendo a série como "uma espécie de fábula baseada na sua história verídica". "Partimos daí para falar de coisas que queremos: casamento, mudanças sociais, trabalho, comida... O processo foi começar com o que sabíamos da Julia, colocá-la numa liquidificadora e torná-la numa história ainda maior", sublinha.

Tal como outras produções, a série, em preparação há quatro anos, acabou por sofrer atrasos devido às restrições da pandemia. Mas Goldfarb acredita que o contexto atual até poderá tornar uma proposta como "Julia" mais convidativa. "O facto de o mundo ter passado os últimos dois anos a cozinhar é uma mudança que nunca poderíamos ter antecipado. Hoje a comida é importante de uma forma estranhamente diferente do que era quando começámos a preparar a série", analisa. "Posto isto, por nós estaria tudo bem caso a pandemia não tivesse acontecido", ressalva com um sorriso.

TRAILER DE JULIA:

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