![30 antes dos 30:](/assets/img/blank.png)
“Cães Danados” (1992) nasceu para ser um filme sobre um assalto. Era intenção de Quentin Tarantino alcançar um clássico dentro do género. A romper com o cinema indie americano em que se destacou, o argumentista e realizador foi além da pretensão inicial – mais do que resgatar um género, criou uma escola a partir de uma visão muito própria. E faltavam dois anos para surgir “Pulp Fiction”, aquela que muitos dizem ser a sua melhor obra.
Uma mesa de café abre o filme. Estão sentados Mr. White (Harvey Keitel), Mr. Orange (Tim Roth), Mr. Blonde (Michael Madsen), Mr. Pink (Steve Buscemi), Mr. Blue (Edward Bunker) e Mr. Brown (Quentin Tarantino). Joe Cabot e o filho, Eddie, que lideram o grupo, engendraram um roubo de diamantes e foram buscar aqueles homens de confiança, que trajam de negro, fatos e gravatas, à volta da mesa daquele café banal de Los Angeles.
A conversa também parece banal. Mr. Brown explica a origem de “Like a Virgin”, de Madonna. Mr. Pink simula o violino mais pequeno do mundo (entre o indicador e o polegar) a manifestar ironicamente pena pelas empregadas de cafés a quem recusa dar gorjeta. Os diálogos escritos por Tarantino prendem a atenção.
![Reservoir Dogs / Cães Danados (1992, Quentin Tarantino) Reservoir Dogs / Cães Danados (1992, Quentin Tarantino)](/assets/img/blank.png)
Numa entrevista, o realizador norte-americano conta que rodou as falas daquela cena entre os atores, até chegar à versão que mais lhe agradou. Infelizmente, o seu Mr. Brown é pouco carismático e faz-nos questionar porque é que Tarantino insiste em ser ator dos seus filmes. Mr. Brown morre pouco depois, quando o assalto corre mal, numa cena em que as expressões faciais de Tarantino são de confusão e não de dor.
Se há elementos-chave em Tarantino, o diálogo é um deles. Mr. Orange tem uma cena interessante – que ficou fora do guião final, mas foi recuperada durante as filmagens – ao surgir em diferentes cenários a ensaiar o relato de uma história até ao momento em que tem de contá-la, para convencer os interlocutores da sua veracidade. Uma outra personagem diz-lhe que o essencial é dominar os pormenores. E a partir daí, é só continuar a contar a história, sem hesitar. As histórias de Tarantino são muito isto: uma sucessão organizada de pormenores, em que não é preciso haver moral, heróis ou vilões.
“Cães Danados” organiza a informação de forma genial, mas não o percebemos no primeiro contacto com o filme. Tarantino usa flashbacks para dar a conhecer um pouco mais sobre as personagens e mostra-nos depois, já no armazém, como se comportam em função do que sabemos delas. Nem é suposto que conheçamos os seus nomes verdadeiros, proibidos que estão de partilhar informações pessoais entre si. A espreitar por essa fechadura que o realizador abre, passamos a deter apenas a quantidade essencial de pormenores para dar sentido à história.
Tarantino gosta de partilhar pouca informação e jogar com as perceções que se constroem a partir daí – ele mesmo já o disse. Por isso, surpreendemo-nos tanto ao saber quem é o informador do grupo, um polícia infiltrado que ombreia com assaltantes de longo cadastro.
![Mr. Orange Mr. Orange](/assets/img/blank.png)
Afinal, aqueles que desfilam em slow motion no início do filme, depois da cena do café, vestem todos de negro, usam óculos de sol com estilo e têm os cabelos puxados atrás com gel. Qualquer um deles podia ser o informador e nenhum deles parece sê-lo. Todos são um pouco heróis e vilões. Mr. Blonde tem uma devoção profunda para com Joe e é isso que o move na sua loucura. Mr. White comove-se com o desfecho do polícia infiltrado e defende-o até ao fim. E até mesmo esse infiltrado – que devia estar do lado dos bons – dispara sobre uma civil.
Não é difícil adivinhar outro elemento-chave em Tarantino, bastará apenas pensar nos litros de sangue vermelho vivo usados nas suas obras mais recentes. Mas “Cães Danados” é apenas o primeiro da linhagem e, como tal, em 1992, a fórmula estava pouco experimentada. Talvez houvesse algum pudor, mas nem por isso se livrou de críticas. Com exceção de dois polícias que esbracejam quando Mr. White dispara sobre o seu carro – sangue espalhado nas janelas –, não há grande violência explícita (para os padrões de Tarantino). Era plausível ver Mr. Blonde a amputar a orelha do polícia refém. Em vez disso, vemo-lo dançar ao som de “Stuck in the Middle with You”, dos Stealers Wheel, e acabamos com a orelha já na mão de Blonde/Vic Vega (irmão de Vincent Vega, a personagem de John Travolta, em “Pulp Fiction”?).
Quando a habitual violência fácil se recolhe, parece sobrar mais espaço para momentos cómicos, como no final de “Cães Danados”. Joe, Eddie, Mr. White e Mr. Orange estão no armazém e apontam armas entre si, num clássico mexican standoff. Mr. Pink, escondido, escapa ileso, carregando a mala com os diamantes roubados.
“Cães Danados” lançou o nome de Tarantino e Hollywood roubou-o ao indie. A ironia não pode ser ignorada: apesar das críticas, foi este filme menos violento que estendeu a passadeira vermelha ao realizador. Hoje, com filmes bem mais agressivos, Tarantino é o nome que fica bem venerar.
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