O filme pode ser visto, este domingo, às 17h00, no Teatro Rivoli, e, no próximo sábado, às 19h30, no Cinema Passos Manuel. É exibido com “Hotel Royal”, de Salomé Lamas.
“’Distopia’ é feito de vários filmes de urgência, que, ao longo de 14 anos, foram sendo mostrados”, começa por explicar à Lusa o realizador.
Este processo vem desde 2007, altura em que acompanhou o desmantelamento do Bacelo e o seu impacto na comunidade cigana que lá vivia, passando pela demolição do Bairro do Aleixo, que começou a acompanhar em 2009.
Filmou ainda a Feira da Vandoma, que ocupava um espaço central da cidade, nas Fontainhas, e foi ‘atirada’ para a freguesia de Campanhã, partilhando espaço com a Feira do Cerco.
Todas essas capturas resultaram em “filmes com uma vida muito curta”, porque “a intenção era essa, mostrar o mais depressa possível um grupo restrito de pessoas outras imagens, outra perspetiva sobre os aspetos da que era publicitada”.
A ligação entre as várias histórias não foi imediata, “veio mais tarde”.
“Durante anos, o projeto da comunidade cigana e o projeto do Aleixo não tiveram nada a ver. Já o Aleixo e a Vandoma estiveram sempre ligados. Aliás, em 2011 as pessoas perguntavam por que carga de água num filme sobre o Aleixo vêm imagens da Feira da Vandoma. Não percebiam. Com o tempo, perceberam”, disse.
O realizador contou que quando começou “a filmar a Feira da Vandoma, não havia nenhuma pista de que ia sair dali”.
“Nem eu imaginava. Para mim, havia uma conexão qualquer de classe. Também são pobres a vender a pobres no centro da cidade, é este tipo de fenómenos com que querem acabar. Sem ter ideia de que também ia acabar”, contou.
O resultado da junção de todas estas narrativas de diferentes zonas e comunidades da cidade “não é bem nostalgia, é uma rememoração”, é “pensar de onde viemos”, porque “para onde vamos depende de onde viemos”, considera.
As histórias são revisitadas em 2021 porque este “não é um filme de personagem individual, é um filme de personagens coletivas”.
“É um filme com características de filme de urgência, mas é um filme de questionamento à memória. Passamos por tudo isto nos últimos 14 anos na cidade. O que é que vamos fazer daqui para a frente?”, questiona.
O que vê agora não parece muito diferente do que vem vendo nos últimos 14 anos.
“O Porto sempre foi uma cidade muito desfalcada de população, mas era conhecido pelas que pessoas que habitavam os espaços do Porto, esses é que eram os portuenses. Agora, parece que estão a expulsar os portuenses, porque os espaços de convívio estão a ser alisados”.
Um desses exemplos é a Feira da Vandoma, “que sempre teve uma função reguladora, no sentido em que não é preciso irmos às classes mais fragilizadas. Mesmo pessoas de classe média, estudantes, jovens, menos jovens, passam por períodos na vida com mais dificuldades, e a feira da Vandoma era uma forma de colmatação de necessidades básicas, inclusive, para essas pessoas”.
Tiago Afonso é “contra a guetização dos fenómenos sociais, mas os fenómenos criam-se, aparecem, desenvolvem-se, muitas vezes em sítios, e os sítios acabam por se adaptar aos fenómenos e os fenómenos aos sítios. Quando os tiramos de lá, espalham-se, podem aparecer sabe-se lá onde”.
Construído com retalhos de diferentes filmes, o resultado mistura vários formatos e tipos de imagem.
“O filme tem essa característica que me agrada, mas não foi voluntário. O que é mais antigo tem uma imagem mais antiga, mais frágil, com menos definição, com outras características, e à medida que o filme vai avançando, como está montado de forma quase completamente cronológica, há alguns saltos, mas acompanha também uma evolução do material a que tinha acesso, a que fui tendo acesso. Acabei, aquilo, no festival DocLisboa o júri até brincou, disse que era o ‘filme dos sete formatos’”.
Apesar de não ter sido propositado, acaba por sustentar a filosofia do cineasta, que se assume como “um fervoroso opositor do esteticismo”.
“Quando há esteticismo a mais e falta de discurso, quando são visualmente fortes mas nada está a ser dito às pessoas, sou um forte opositor. Tenho amigos que trabalham esse cinema super esteta, mas os que respeito tentam que não seja só isso”, adianta.
Esta é também uma forma de respeitar as histórias: “Se estou a filmar uma pessoa em sofrimento, vou estar a ter cuidado com a diagonal, ou com o equilíbrio das cores? Acho isso uma falta de caráter, acima de tudo. O cinema não pode vir acima de tudo”.
E prossegue, justificando que “não é uma questão de desleixo, é uma questão de justeza”.
“Não é justiça, é justeza. Para cada imagem, há um conteúdo justo. Para cada conteúdo, há uma imagem justa”, concretiza.
Para o realizador, “os olhos não são a meta, os olhos são o meio para chegar ao cérebro, e ao sistema nervoso, e às emoções”.
Essa postura vem também de uma intenção de opor “cultura a arte”.
“Tive um professor, Sérgio Fernandes, que muito cedo me ensinou a opor o apolíneo, a harmonia, ao dionisíaco, ao caos. Sou uma pessoa do caos, não da beleza harmoniosa. Não sou uma pessoa do Deus [grego] da poesia Apolo. Sou do Dionísio, vinho caos desordem. Isso reflete-se no meu cinema”, afirma.
Tiago Afonso dedica o filme às “pessoas que se vêm privadas de ter direitos de cidadãs, de ter direitos básicos, devido a não contribuírem muito para a economia são postas de lado”.
“Queria dedicar o filme a essas pessoas, porque é sobre, por e para essas pessoas”, reitera.
O festival de cinema Porto/Post/Doc começa hoje e, até dia 30 de novembro, traz cerca de 100 filmes a seis salas da cidade do Porto, sob o tema central "Ideia para Adiar o Fim do Mundo".
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