Relaxado, conformado e com uma simpatia e um à-vontade desarmantes, o realizador dinamarquês
Lars von Trier sabe que as afirmações infelizes que proferiu há dois dias lhe podem trazer consequências muito mais gravosas que a de ser tornado «persona non grata» no Festival de Cannes.
Na conferência de imprensa de apresentação do seu mais recente filme,
«Melancholia», o realizador dinamarquês afirmou «eu compreendo Hitler. Acho que ele fez algumas coisas erradas, sim, com certeza, mas eu consigo vê-lo sentado no seu bunker no final» acrescentando que «estou apenas a dizer que acho que entendo este homem. Ele não é o que se poderia chamar de um tipo porreiro, mas sim, eu entendo muito a seu respeito, e sinto por ele um pouco de compaixão, sim. Mas vamos lá, não sou a favor da Segunda Guerra Mundial e não sou contra os judeus».
O realizador já pediu publicamente desculpas pelo que justificou ser um raciocínio mal formulado o que não o impediu de ser considerado «persona non grata» pelo festival. Mas voltou agora a sublinhar o sucedido quando o SAPO se encontrou com ele num hotel numa cidade nos limites de Cannes.
«Em primeiro lugar, tenho de desculpar-me um pouco porque se tivesse dito aquilo em dinamarquês teria tido muito mais nuances [as afirmações foram ditas em inglês, que não é a língua materna do realizador]. Claro que não concordo com nada do que o Hitler fez, o que eu disse foi que, especialmente depois de ter visto o
Bruno Ganz em
«A Queda» , acho que consegui ver um homenzinho no interior dele que era bastante interessante, porque eu acho interessante que haja um pequeno nazi no interior de todos nós e que haja um pequeno homem no interior de Hitler.
Esse foi o meu ponto mas claro que não foi transmitido bem de todo, e eu fui completamente idiota, ingénuo e estúpido».
De qualquer forma, o cineasta também reconheceu que não foi ajuizado ter abordado o tema até porque pensa «no Mao Tse-Tung e no Estaline e acho que de alguma forma somos livres para os discutir em certas coisas. Com o Hitler, é uma zona proibida. Foi extremamente estúpido, já o disse várias vezes, mas também não devemos deixar de falar sobre as coisas só porque é proibido. Claro que a forma como aquilo foi dito foi infeliz, eu fui por ali fora, enredei-me nas palavras, correu mal e já não consegui regressar».
Contudo, em relação à correcção política, que sempre esteve no extremo oposto das actuações públicas e artísticas de von Trier, o cineasta sublinha que ela «é perigosa porque não se pode falar das coisas como elas são, e porque há muitos tópicos sobre os quais não se pode discutir. Claro que também não se deve ser estúpido, como eu fui. Mas acho que as forças que me fazem fazer coisas estúpidas também me fazem fazer filmes».
Quanto à justeza da reacção do Festival em relação às suas declarações, von Trier afirma que «No que me diz respeito, ainda tenho aqui dois bons amigos, o
Gilles Jacob e o
Thierry Frémaux [Presidente e director artístico do Festival de Cannes, respectivamente], que são pessoas muito inteligentes e que eu respeito muito. E eles fazem o que têm de fazer, têm um grupo de directores que os apoia».
O realizador admite que as consequências da polémica em relação ao filme poderão ser danosas: «provavelmente, agora haverá vários territórios que poderão não o querer comprar. Claro que se tirarmos algumas palavras do contexto, como «eu simpatizo com o Hitler», isso é letal. Se alguém me perguntasse o que eu achava de um homem que simpatiza com o Hitler eu teria a mesma reacção. Como isto foi o que se falou, foram estas palavras divulgadas, claro que vai fazer mal».
Mas o pior poderão não ser as consequências para «Melancholia», que já está terminado e comprado para muitos países, e sim para o próximo filme do realizador,
«The Nymphomaniac». «Esta situação pode ter-me magoado mais do que penso, até por questões financeiras, porque alguns dos financiadores do filme saíram do projecto e eu fiquei em mau estado. Mas espero que o projecto avance», afirmou o cineasta, ironizando que «espero que não tenha de voltar a fazer filmes em 8 mm».
Quanto ao projecto de recriação de
«The Five Obstructions» desta feita com
Martin Scorsese nas tarefas que couberam no filme original a
Jørgen Leth (ou seja de fazer cinco remakes de filmes seus com obstruções impostas por von Trier), o realizador afirma que «ainda não falei com o Marty mas quando se é apresentado com apenas duas frases da conferência de imprensa consigo perceber que ele esteja preocupado. Mas espero que corra bem».
Mais surpreendido ficou quando soube da reacção do seu conterrâneo
Nicolas Winding Refn na conferência de imprensa do filme que realizou,
«Drive», também em competição no Festival de Cannes. Espantado ao saber que o colega afirmou que sentia «repulsa» pelas palavras que provocaram a celeuma, von Trier afirmou com evidente espanto e tristeza que «eu conheço-o desde pequeno. Fuck him».
Comentários