A partir da correspondência entre o escritor António Lobos Antunes e a primeira mulher, Maria José, quando esteve destacado nos anos 1970 em Angola, Ivo M. Ferreira deixa um retrato sobre "a maior tragédia portuguesa do século XX", como contou à Lusa.
"Quando comecei a trabalhar no filme, marquei um almoço com dois ex-combatentes e a primeira coisa que me disseram foi: 'Oiça lá, se nós vivemos aquilo e não falamos disso, você quer pegar nisto para quê?'. Fico muito contente por saber que agora há ex-combatentes que estão a organizar-se para irem ver o filme", disse.
Ivo M. Ferreira nasceu em 1975, já depois da Revolução de Abril, e quis tentar perceber aquele acontecimento da história recente de Portugal sobre o qual ainda não se falou o suficiente e que continua a ter "feridas muito abertas".
Apesar de Ivo M. Ferreira ter feito pesquisa e investigação, o mote para o filme foi o livro "D'este viver aqui neste papel descripto", com as cartas organizadas pelas filhas de Lobo Antunes e da mulher. Médico de formação, na altura Lobo Antunes ainda não tinha trinta anos nem tinha publicado qualquer romance.
"Cartas da guerra" foi rodado em Portugal e em Angola, com mais de 40 atores, entre os quais Miguel Nunes, no papel de António, e Margarida Vila-Nova, que representa Maria José e é a leitora das cartas de amor, fio condutor de toda a narrativa do filme.
"Acho o filme muito feminino. Acredito que muitos dos homens que estiveram lá não quererão lembrar-se. Fico muito contente que as pessoas que estiveram lá e que se sentem relatados nas cartas, pelo olhar astuto e brilhante do jovem médico", disse o realizador.
Ivo M. Ferreira esclareceu que não quis fazer qualquer espécie de exorcismo sobre a História de Portugal, nem tão pouco ter qualquer intenção didática.
"Esta é a minha visão, pelos vistos bate certo com a de outras pessoas. Eu estou a falar de uma tragédia humana, dos portugueses, dos angolanos. Estou a falar destas vítimas que foram empurradas brutalmente para uma guerra estúpida e injusta e completamente fora de época", explicou.
Depois de ter sido exibido em Berlim, "Cartas da Guerra" concorre a uma nomeação para os prémios da Academia Europeia de Cinema e em 2017 terá estreia comercial garantida em vários países, entre os quais França, Brasil e Holanda.
Mais do que presenças em festivais ou prémios, Ivo M. Ferreira quer que o filme tenha espectadores, tenham ou não memória da Guerra Colonial.
"Cartas da Guerra" é a terceira longa-metragem de Ivo M. Ferreira, um filme que sofreu as consequências da crise económica em Portugal, tendo demorado oito anos a concretizar, embora a rodagem e montagem tivesse sido rápida.
A crise económica no país, onde viu as pessoas "repetidamente e invariavelmente tristes", foi também uma das razões para Ivo M. Ferreira ter decidido mudar-se para Macau, onde vive há alguns anos. É lá que irá rodar o próximo filme, intitulado "Hotel Império", mas já tem planos para depois.
"Estou a preparar outro para 2018, mais outro dos assuntos que ninguém quer falar. É sobre as FP25 [Forças Populares 25 de Abril, organização armada que existiu em Portugal nos anos 1980]. É ficção, uma grande produção, que está ainda em negociação", disse.
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