No meio do “mato” encontra-se um casarão, hoje à mercê da vontade de um caseiro e da população da Aldeia Nova (em Ourém) como parte de uma memória coletiva, uma reunião de fantasmas de um passado não longínquo que continua a assombrar e fascinar. O antigo jornalista e agora realizador e produtor Filipe Araújo apercebeu-se de forma acidental da relevância do edifício, ainda antes de descobrir que ele tinha mais ligação consigo do que podia imaginar.

A história começa ainda antes da produção do documentário "O Casarão": da busca pela bibliografia desconhecida do seu pai, professor universitário falecido em 2008, resultou uma revelação por ele “escondida”, a de ter frequentado um seminário.

A informação foi-lhe desvendada por um blogue de ex-seminaristas que tinham sido colegas do seu progenitor e não ficou por aqui: foram também reveladas cartas que permitiram a Filipe Araújo continuar a viagem ao encontro da herança perdida e ao dito Casarão. E o encontro aqui com António, vizinho e caseiro, e as conversas e conversas sobre acontecimentos e recordações prestes a desvanecerem-se, criaram a ideia de fazer um filme que tudo preservasse.

“'O Casarão’ acabou por ser uma desculpa para estar com ele [pai] e conhecer um lado profundo dele […] Não era a minha intenção inicial fazer um filme sobre um seminário, tudo isso encaminhou-se de forma orgânica. A ideia que tinha de um seminário era a transmitida pela 'Manhã Submersa' de Vergílio Ferreira, livro que acabou por generalizar a imagem dos seminários em Portugal”, disse Filipe Araújo ao SAPO Mag.

A realidade que veio a conhecer revelou-se bem diferente do seu imaginário: aquele seminário “em oposição a outros seminários, era um espaço muito cosmopolita. Havia professores vietnamitas, por exemplo, e até o reitor veio do Canadá, e existia uma abertura ao mundo do cinema através das embaixadas […] O paradoxo é que estas ‘crianças’ acabaram por descobrir a liberdade entre muros” .

Filipe Araújo

Tudo isto num país fechado, a atrasar-se socialmente dia após dia, no “apogeu” do Estado Novo. Perante esta realidade, o seminário foi um importante polo de progresso, contribuindo para que a aldeia fosse uma das primeiras a ter eletricidade e estradas na região. E em mais um paradoxo em relação aos objetivos de formação do espaço, o de criar “párocos conservadores”, existia equidade entre homens e mulheres (“Esta realidade não entra no filme, porque só a descobri depois”).

Em jeito de provocação, ou de registo acidental, Filipe Araújo captou o conservadorismo latente nos sermões eclesiásticos, ouvidos numa missa de domingo, clamando o dever de submissão da mulher ao homem, da mesma forma que o homem é submisso a Deus. Esta leitura, supostamente a representar o tradicionalismo familiar daquela povoação, encontrava uma rivalidade na abertura intelectual, sentimental e de espírito humanista do seminário.

“O Casarão” é um filme de várias vozes em uníssono e Filipe Araújo cria um narrador coletivo, experiência de uma fusão entre correspondências, tanto do seu pai com outros seminaristas, como das palavras sapientes e sumarentas do escritor João de Melo (do livro “Gente Feliz com Lágrimas”).

Segundo o realizador, o documentário “fala da fragilidade da memória […], de uma memória que vai desaparecendo”, e desta forma, além de abordar a história do edifício, materializa os fantasmas que ainda por lá andam. Uma memória que resiste ao seu esquecimento.

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