O Fórum Barreiro, o cineclube local, Biblioteca Municipal e Auditório Municipal Augusto Cabrita acolhem até dia 29 de outubro a segunda edição do Sonica Ekrano - Cinema Documental e as Músicas das Margens, uma iniciativa da associação cultural OUT.RA com a Câmara Municipal do Barreiro.

O festival propõe 15 documentários centrados nas "músicas, músicos, sons e movimentos nas margens da massificação e da popularidade", nos quais se incluem nomes como Fela Kuti, Courtney Barnett ou Throbbing Gristle.

Poly Styrene, Lydia Lunch, Tangerine Dream e Telectu são outros artistas em destaque e os filmes que os abordam foram alvo de reflexão crítica do jornalista e crítico José Marmeleira, a convite da organização do evento. Leia as impressões abaixo:

Quatro filmes da nossa música

"Poly Styrene: I am a cliché", "Lydia Lunch: The war is never over", "Tangerine Dream: Revolution of Sound",  e "Sonosfera Telectu": o que tem este quarteto de documentários em comum? À partida pouca coisa, até por aquilo que os nomes nos parecem dizer. E, no entanto, qualquer melómano já percebeu que se trata de documentários musicais, sub-género que floresceu nos últimos 30 anos. Também conseguirá identificar nomes: neste caso, o de duas mulheres e uma banda. Pois bem, comecemos pelos dois primeiros.

São retratos de duas artistas que sugiram e se afirmaram nos finais dos anos 1970: Poly Styrene, no punk inglês, ao leme dos maravilhosos X-Ray Spex; Lydia Lunch, entre os estilhaços da no wave em Nova Iorque, no comando dos Teenange Jesus & Jerks e dos 8 Eyed Spy. Mas são retratos distintos. "Poly Styrene: I Am a Cliché" foi realizado pela filha da cantora e letrista (Celeste Bell, a meias com Paul Sng) e envolve-nos em memórias pessoais e coletivas. As da vida de Styrene, adolescente inglesa, filha de pai negro e mãe branca, que encontrou no punk (efémero) um espaço de liberdade artística e política.

Poly Styrene

Nesse palco, deixou de ser Marianne Joan Elliott-Said (nome de batismo) para se transformar em Poly Styrene. E, de microfone na mão, cantou, movida pela fúria da inteligência, aquilo que via à sua frente: a misoginia, o racismo, o consumo num horizonte em que já se avinhavam as distopias do presente. Reconstituição poética de uma vida artística, este documentário não mitifica um percurso. Introduz outras questões, mais chãs, mas, certamente, mais profundas.

É também isso que "Lydia Lunch: The War Is Never Over", de Beth B, faz, mas noutro registo. Para já, não tem o tom da homenagem. Lunch continua entre nós e é ela que toma a direção do filme, de frente para a câmara. Reflete sem rodeios sobre a sua vida e da sua obra musical, rememora os anos que viveu, entre várias luminárias da no wave, no Lower East Side de uma Nova Iorque devoluta, fala dos seus primeiros concertos, dos seus desejos e dos seus traumas. O trauma é se quisermos o grande assunto do filme. O trauma pessoal – violentíssimo – e coletivo que feriu Lunch tanto quanto a motivou a perseguir, sedenta uma voz. Essa voz, cavada e alimentada pela dissonância das guitarras, é a que reafirma a necessidade de um combate. Contra os demónios de um passado que são também os de um país.

Tangerine Dream

Ora de "Tangerine Dream: Revolution of Sound", de Margarete Kreuzer, está ausente a marca do trauma. É um filme etéreo e espacial que narra a cronologia da banda alemã que trouxe à pop e ao rock os mistérios e os ritmos da música eletrónica. Há momentos, quando se foca no ambiente boémio da Berlim dos anos 1960, em que nos reenvia para a efervescência da Nova Iorque de Lunch, mas a afinidade é brevíssima. Trata-se, se se quiser, de um filme que privilegia o que os Tangerine Dream foram e fizeram: uma banda que reinventou metódica e lentamente, criando o seu próprio mundo estético e musical. O cicerone desta aventura é quase sempre Edgar Froese – com a sua voz póstuma – mas participam nela variadíssimos encontros: David Bowie, Reiner Fassbinder, Richard Branson, Michael Mann. Sempre na busca elevada de textura, da cor e do ritmo, a fim de inventar novos lugares.

Sonosfera

Já "Sonosfera Telectu" pode ser descrito assim: uma experiência heteróclita, um fluxo em expansão longitudinal de imagens e sons que os Telectu de Vítor Rua e Jorge Lima Barreto nos deixaram. Não se trata de um retrato ou de um mero documento biográfico-musical, mas de um objeto que poderíamos considerar autoral e artístico. Há uma formar de pensar e organizar um arquivo que nos dá a ouvir uma música em processo, em devir. De um modo que não é linear e ordenado, mas livre e entregue ao acaso, à surpresa, à inteligência como a foi a música dos Telectu. E o que é fascinante nesta oferta é que ela é profundamente humana e mundana. Vemos os músicos, vemos os amigos dos músicos, vemos pessoas em concertos, vemos lugares e sítios. Escutamos conversas, assistimos a esses momentos que por vezes não prezamos o suficiente: os do mero e fundamental convívio humano. Uma esfera em que a vida pública e a vida privada se ligam no entusiamo da criação de sons e na história de uma amizade que o filme imortaliza. Para nosso renovado júbilo.