“É preciso ver o que se passa no pós-1965 mesmo em Portugal, com uma forte componente de estúdio e entrega sónica, numa lógica que depois é recuperada pelo movimento punk com a abolição do virtuosismo. Temos uma entrega e até às vezes uma cacofonia com guitarras estridentes e barulhentas”, disse à Lusa Marcos Cardão, investigador no Centro de Estudos de História Contemporânea.
Além da coletânea “Portuguese Nuggets – a trip to 60’s Portuguese Beat Surf and Garage” (Galo de Barcelos, 2007), com três volumes publicados, a editora Smoke Records publicou dois volumes da coleção “Cazumbi – African Sixties Garage” (pormenor da capa na foto abaixo), que incluiu várias bandas oriundas do continente africano, em especial de Angola e de Moçambique, como Gino Garrido & Os Psicodélicos, Os Rebeldes, Os Gambuzinos, Kriptons, Os Inflexos, Os Impacto, Os Rocks, Vum-Vum, entre outras.
Temas como “That’s what I want” d'Os Impacto (Angola) e “Wasati Walomu” de Simião (Moçambique) podem enquadrar-se no garage rock, com origem nos Estados Unidos e Canadá em meados dos anos 1960, com letras mais agressivas e com um som menos sofisticado do que a música comercial da época, através da distorção das guitarras elétricas e que adotou o nome pelo facto de os ensaios decorrerem em garagens.
“Só a partir do atual culto pelo revivalismo, e que se insere de certa forma naquilo que o crítico de música britânico Simon Reynolds designa ‘retromania’, é que se começou a olhar de outra forma e a ver com outros olhos o rock em Portugal e estas coletâneas são indispensáveis e deixam-nos descobrir grupos, sobretudo das ex-colónias, e que eram bandas contemporâneas dos Sonics e dos Stooges, encontrando-se paralelismos contemporâneos muito interessantes e que devem ser reavaliados e requalificados quer do ponto de vista sónico mas também do estilo de vida”, diz Marcos Cardão autor do estudo “’A juventude pode ser alegre sem ser irreverente’. O Concurso Yé-yé de 1966-67 e o lusotropicalismo banal” publicado no livro “Cidade e Império – Dinâmicas Coloniais e Reconfigurações Coloniais”.
Na opinião do investigador, é preciso reescrever a história do rock em Portugal considerando este movimento embrionário porque, afirma, sobretudo a partir de 1965, existe na música a incorporação de novas linguagens: “rock complexificou-se, quer em termos instrumentais quer em posições políticas mais evidentes”.
De acordo com Marcos Cardão, os temas que fazem parte das coletâneas adquirem atualmente estatuto de culto para a subcultura urbana e são objeto de coleção em Portugal, em vários pontos da Europa e mesmo nos Estados Unidos.
Estas bandas são geralmente compostas por jovens das populações das cidades de Lisboa, Porto e Coimbra, de uma classe média com uma juventude permeável a uma cultura popular urbana no final dos anos 1960, início dos anos 1970, no final da ditadura e durante a guerra colonial que impunha o serviço militar obrigatório.
“Os novos estilos rock eram acompanhados por novas formas de dança cujos movimentos desafiavam as posturas corporais mais contraídas. Este foi mais um elemento diferenciador da nova cultura jovem que pretendia romper com o tempo comum e fundar um espaço cultural alternativo e transformar o prazer numa condição de liberdade, mas também num recurso político, sobretudo num país onde ainda se desconfiava das condutas ditas discordantes dos padrões de vida tradicionais”, diz o autor do estudo.
A coletânea Cazumbi inclui bandas da África do Sul (A-Cads, Them, Invaders, Mad-Munks, The Gonks), da República de Madagáscar (Les Safaris, Les Jokers), do Gana (Tall Emma & His Skipper) e do Congo (Les Krakmen, Orchestre Veve), que chegaram a atuar em Lisboa, em Luanda e na então Lourenço Marques (Maputo).
Para muitos jovens em Angola e Moçambique o centro de influência não se encontrava em Lisboa e no caso de Moçambique, são evidentes as ligações com a música que se fazia na mesma altura noutros pontos do continente africano, nos Estados Unidos ou no Reino Unido. Os jovens da antiga província ultramarina de Moçambique tinham também como veículo fundamental a LM Radio (Lourenço Marques Radio) que transmitia em inglês para a região, tendo-se tornado numa antena muito popular na África do Sul e na Rodésia.
@Lusa
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