Comercialmente, a fase áurea de Kelis pode já ter passado. As canções mais populares da norte-americana pertencem quase todas aos primeiros discos e o sexto dificilmente mudará o cenário. Não que a cantora (e chef) pareça lamentá-lo muito, já que está pouco interessada em criar derivados de êxitos como "Milkshake" ou "Trick Me". "I hate you so much right now", frase emblemática de outro single bem sucedido, "Caught Out There", está, aliás, nos antípodas das que ouvimos em "Food", que mostram uma postura menos confrontacional do que nesses tempos.

A Kelis de 1999 ou de 2003 talvez não se imaginasse a cantar versos como "You've been more than just a man/ You've really been a friend" ou "You're solid as a rock/ You're everything I love". E se, no papel, declarações como estas (ambas de "Breakfast") podem deixar suspeitas de um disco bem comportado e meloso, o resultado é antes um conjunto de canções mais maduras e contemplativas, sim, mas com a mesma atitude e carisma a que a cantora nos habituou.

Inspirado numa paixão pela gastronomia reforçada nos últimos anos - durante os quais Kelis editou um livro e apresentou um especial televisivo de culinária -, "Food" concentra-se mais no que alimenta a alma. As reflexões sobre relacionamentos presentes, passados ou almejados surgem acompanhadas de uma luminosidade inesperada - sobretudo por se mostrar tão dominante ao longo do alinhamento -, que vai de hinos otimistas e eufóricos como "Forever Be" ao intimismo de "Bless the Telephone", breve (e bonita) releitura folk da canção do britânico Labi Siffre, editada nos anos 1970.

Videoclip de "Jerk Ribs":

Na maioria dos outros temas, Kelis também recua algumas décadas para recuperar ambientes soul comandados por uma profusão de metais, cordas e teclados, condimentos que secundarizam os sintetizadores e percussão habituais nos discos anteriores. A produção de Dave Sitek, dos TV on the Radio, encarrega-se de garantir que a tentação vintage não seja sinónimo de conformismo e a banda de suporte, com mais de uma dezena de músicos, mantém uma coesão e elegância inatacáveis.

A colaboração valoriza boas canções tornadas ainda melhores pela presença de Kelis, cuja voz áspera e rouca q.b. dá personalidade e convicção a temas que, se interpretados por outras estrelas, talvez fossem reduzidos a veículos de virtuosismo vocal. "Food" não só recusa a carga histriónica de Alicia Keys ou Beyoncé como é, aliás, o álbum adulto e coeso que o famigerado disco homónimo de "Queen Bee" não conseguiu ser.

Sem se preocupar em disparar êxitos potenciais para playlists acompanhados por videoclips embasbacantes, Kelis serve uma refeição que valoriza o conjunto em vez de uma iguaria em particular. Uma refeição, ainda assim, quase sempre quente, com destaque para uma "Friday Fish Fry" em modo funk ofegante, uma "Change" inquieta com as leis do desejo em ambiente cinematográfico ou uma "Cobbler" que parte do afrobeat rumo a um musical da Broadway. A languidez de "Floyd" ou a quase canção de embalar "Dreamer" também ajudam a explicar porque é que a reputada Ninja Tune juntou "Food" às suas edições.

Um disco destes, orgânico e caloroso, mostra-se ainda mais surpreendente depois das texturas eletrónicas de "Flesh Tone" (2010), bem sucedida incursão pela EDM (talvez mesmo a melhor do género) que sugeria desenvolvimentos condizentes. Kelis chegou a gravar com o britânico Skream para um sucessor igualmente dançável, mais inspirado pelo trip-hop e UK garage, e não descarta a hipótese de voltar a esse material. Mas por agora, propõe-nos que degustemos "Food"... e deixa-nos muito bem servidos.