Há tempos, no contexto de um outro trabalho, encontrava-me nos estúdios da Valentim de Carvalho. Contavam-me sobre uma nova fadista, “espetacular”, que iria ser o principal tema de conversa dali a uns meses. A expetativa confirmou-se. Gisela João cantou, domingo à noite, os temas do seu primeiro álbum, homónimo, para um auditório cheio, esgotado até, e criou memórias de uma grande noite na mente de todos os que se deslocaram até Belém.

A fadista de Barcelos não tem xailes, nem está vestida até aos pés. Apenas um vestido preto, curto, que mais tarde trocaria por um vestido de tons amarelados. Deixou os saltos em casa e, “em vez de poderosa, veio rasteirinha”, de sapatilhas, deixando à mostra as tatuagens de que fala em “Vieste de longe”. Mas não é por isso que a sua voz tem menos poder - muito pelo contrário.

Numa carta aos fãs [a melhor forma de chegar a todos os presentes], que estava disponível para recolha junto à entrada do Grande Auditório do CCB, Gisela desafia-nos a seguir na sua companhia, de coração aberto, numa viagem pelas faixas do seu disco. Entra em palco de forma um pouco sorrateira, atrás de Ricardo Parreira, na guitarra portuguesa, Francisco Gaspar, no baixo, e Nelson Aleixo, na viola, e, entre acenos, esconde o nervosismo e a timidez, que confessou sentir em carta aberta, e que ali vinha à flor da pele nas várias intervenções entre músicas. Mas apenas aí, uma vez que a voz não cede na hora de cantar.

Seguindo o alinhamento na contracapa do disco, “Madrugada sem sono”, “Vieste de longe” e “O meu amigo está longe” são os temas fortes que dão o pontapé de saída para um espetáculo de uma hora e meia. Entre saltos, danças, quedas para o chão, gestos expansivos e expressivos, Gisela deixa muito de si no palco e um pouco na memória de todos. Apesar da descontração, simplicidade e atitude informal na aparência e no cenário, o Fado cantado é sério, intenso e escutado em silêncio, como manda a tradição. No final de “O meu amigo está longe”, escrita por Ary dos Santos, a intérprete do tema que ficou conhecido na voz de Amália confessa que a música a deixa com a lágrima ao canto do olho e que tinha prometido não chorar. O que é certo é que, fruto – ou não - do nervosismo do seu primeiro grande concerto em Lisboa, foram vários os momentos em que esta mulher do norte baixou o véu e deixou transparecer um turbilhão de sensações.

O “Bailarico Saloio” deu a deixa para percorrer o palco de lés a lés, dançando e apelando ao público que dançasse também, pois “faz bem à saúde”. Já “Voltaste” foi cantada em frente ao espelho, olhos nos olhos, como se num diálogo consciente sobre uma decisão sofrida. De seguida, a ‘guitarrada’ entre os três músicos foi a deixa para trocar o vestido e seguir para uma “Primavera Triste”, de Aldina Duarte, e uma “Mariquinhas”, “oferecida pela Capicua”. A vitalidade de “Malhões e Vira” contrasta com o triste fado, ou destino, de “Maldição”, de Armando Vieira Pinto, uma conversa com o coração que às vezes é preciso ter e que pediu um regresso em frente ao espelho. “És linda, mulher maldita”, ouviu-se no final.

“Não venhas tarde”, a letra que podia ser uma carta, é cantada de papel em punho e à média luz, já que a timidez combina com a luz apagada. Gisela João é chamada ao palco duas vezes mais por um público, do mais heterogéneo possível, como é importante referir, que tudo fazia para a ouvir uma vez mais. Repetiu-se a “Madrugada sem sono”, repetiu-se “Antigamente” e “Julguei Endoidecer” foi encarnada de forma quase visceral. “Não é fadista quem quer, mas sim quem nasce fadista”, dizem os versos de “Antigamente”. Se dúvidas havia, rapidamente se dissiparam. A fadista de Barcelos mostrou uma entrega sem igual, saiu com uma onda de aplausos, uma ovação em pé e um ramo de flores nas mãos, e, enquanto isso, encantou Lisboa e mostrou o porquê de ser uma das revelações do ano.

Rita Bernardo