Em declarações à Lusa, Carlos Gomes disse que a ideia deste espetáculo se liga à sua formação como arquiteto e surgiu ao verificar que Portugal, Espanha e Marrocos “formam um território único” e da particularidade do poeta Al-Mutamid, nascido em Beja, em 1040, “ser uma voz muito direta, falar na primeira pessoas e ser muito intimista”.

O contacto com este poeta, filho do Rei Al-Mutadid e de uma berbere, foi através da antologia “O meu coração é árabe”, que reúne vários poetas árabes do século XI, traduzidos por Adalberto Alves.

Carlos Gomes defende que “ainda hoje é percetível, no território dos três países, que foi moldado por uma cultura comum”, e é possível identificar, como defendeu, "semelhanças e raízes comuns".

“Nós estivemos em Tânger e o El Arabi Serghini começou a cantar uma cantiga de inspiração sufi [corrente mística e contemplativa do Islão], e a melodia era exatamente igual, mas exatamente igual, a uma modinha alentejana, a ‘Salsa Verde’, e o Janita Salomé levantou-se e disse-lhe que a ia cantar como a cantavam no Alentejo; a estrutura harmónica era a mesma”, contou.

No espetáculo, “encenado cinematograficamente”, participam os marroquinos El Arabi Serghini (voz e viola andaluza) e Jamal Ben Allal (alaúde e violino), os espanhóis Cesar Carazo (voz e fídula) e Eduardo Paniagua (saltério e instrumentos vários), além dos portugueses Janita Salomé (voz e percussão), Joaquim Teles (percussão) e Filipe Raposo (piano).

Esta experiência terá continuidade com a edição de um disco que está a ser gravado no teatro S. Luiz, durante os ensaios, com o registo do espetáculo e a realização de um documentário sobre as “terras de ascendência destes músicos”, que, ao longo das suas carreiras, têm refletido a influência da cultura al-andaluz.

“Al-Andaluz” foi o topónimo como os árabes batizaram a Península Ibérica, sendo uma referência atual à “mescla de culturas que nesta área se concretizou”. Referindo-se a Al-Mutamid, o terceiro filho do Rei, ascendeu ao trono da Tarifa de Sevilha como Abad III, destacou que foi o último soberano da dinastia dos Abábidas.

“O espantoso na sua poesia é a liberdade, pois escrevia sobre o que queria, já que não obedecia a qualquer tema dado por um patrono, pois era um homem poderoso", disse Carlos Gomes. “A sua poesia faz imenso eco nos dias de hoje, pois ele fala como um artista contemporâneo na sua relação com o mundo, do seu ponto de vista pessoal”, sublinhou o responsável do projeto. Gomes realçou a “liberdade do poeta, nos tempos felizes da juventude, em Silves, descuidado e longe dos corredores do poder”.

Al-Mutamid foi governador de Silves e, em 1069, sucedeu ao pai. Apesar de alguns sucessos militares, como a conquista de Múrcia, o seu Exército, após várias investidas, não conseguiu deter o avanço militar de Afonso VI de Leão e Castela, em 1090, acabando desterrado para Aghmat, nos arredores de Marraquexe, em Marrocos, onde “passou o resto da sua vida dedicando-se à poesia” e onde acabou por morrer “na maior das pobrezas”.

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