Há mais três décadas, ao lado do The Pop Group, Mark Stewart iniciava um percurso que partia da energia e contestação do punk, então emergente, para mergulhar num caldeirão sonoro que também incluía ingredientes dub, funk, reggae ou temperos do que viria a catalogar-se como industrial. Desta confeção fervilhante, urbana e caleidoscópica surgiram discos como "For How Much Longer Do We Tolerate Mass Murder?" (1980) e canções na linha de "We Are All Prostitutes", que aliavam a libertinagem sonora a uma atitude não menos rebelde, como os títulos começavam por sugerir.

O rastilho para a revolta, como o de outras bandas da época, não durou muito e a história do The Pop Group contou-se entre 1979 e 1981 (voltariam em 2010, para alguns concertos, já no epílogo, e até falam num álbum novo), ainda que os seus elementos se tenham dispersado por muitos projetos da sua Bristol natal (cidade que teria maior visibilidade no mapa musical na década seguinte, com o surgimento do trip-hop).

O caminho de Mark Stewart, mentor e vocalista, fez-se sempre em nome próprio, o que não invalidou uma vasta coleção de colaborações que foi agregando ao longo dos anos - com gente como Tricky, Trent Reznor, Massive Attack ou Chicks on Speed. Não tantas, contudo, como as que encontramos agora em "The Politics of Envy", o seu oitavo álbum: Primal Scream, Daddy G (Massive Attack), Lee 'Scratch' Perry, Douglas Hart (The Jesus and Mary Chain), Gina Birch (Raincoats), Keith Levene (Clash/PiL), Tessa Pollitt (Slits), Richard Hell, Factory Floor, o produtor Kahn e o realizador Kenneth Anger, este último "o artista mais importante dos últimos 100 anos", garante-nos Stewart durante a entrevista telefónica.

Reunir tanta gente poderia parecer o pesadelo de qualquer agenda, até da mais elástica, mas esteve longe de ser o caso. "Não me sentei e decidi que ia trabalhar com os Primal Scream... fui convidando as pessoas à medida que fui desenvolvendo o disco. Não foi nada premeditado, fui encontrando novos e velhos amigos e juntando elementos", explica com uma calma no extremo oposto da forma como o ouvimos cantar.

Mark Stewart vs Primal Scream - "Autonomia":

Um road movie musical com mais realidade do que ficção

"Muitos dos discos que fiz resultaram de experiências que tinha necessidade de fazer, por isso soavam a trabalhos inacabados, embora deliberadamente, porque nunca consigo estar muito tempo sem fazer música. Este, por outro lado, parece-me um trabalho completo, quase como um filme, um road movie sobre a minha vida nos últimos quatro anos - repleto de músicos convidados, os outros atores deste filme", contrasta.

A estrada não surge só em sentido metafórico, já que os locais de criação do disco foram tantos como as sonoridades que por lá encontramos: "Os últimos quatro anos levaram-me ao Porto, Lisboa, Berlim, Viena, Vancouver... Estive a trabalhar com o Kenneth Anger no Porto, depois com os músicos da secção rítmica, em Berlim, depois em Londres com o Lee Perry...".

A dispersão espacial foi acompanhada por um conceito que une mais do que separa, um espelho turvo dos dias de hoje: "O meu raciocínio faz-se muito através de colagens, montagens, cortes e o disco é um bocado isso, funciona de forma muito gráfica: junta elementos metafísicos, religiosos, políticos, económicos, históricos e envolve muitas questões. Não separo a política da realidade, por isso também não a separo da música. Está tudo interligado, uma reação leva a outra, não podes separar o político e o económico.

O balanço desta série de viagens, paragens e colaborações não poderia ter sido melhor, diz-nos ainda. "É um dos trabalhos de que mais me orgulho. Houve muita magia, muita cumplicidade, muita boa disposição... foi como uma grande festa de anos. As letras abordam questões muito pesadas e por vezes a música é igualmente pesada, mas o que retenho do disco é o lado caloroso das gravações, o sentimento de família que se criou entre os músicos. Por alguma razão, muitas destas pessoas admiram o meu trabalho mas para mim é muito difícil analisá-lo, distanciar-me".

Fazer um disco como quem partilha um guarda-chuva

Tanto pelas palavras como pelos sons, "The Politics of Envy" é um álbum que traduz o presente. Mas o que esteve na sua origem fez o seu autor recuar vários anos. "Uma das coisas que redescobri foi o companheirismo que vivi nos primeiros tempos da [editora independente] Rough Trade, em que sentia uma empatia muito forte por bandas como as Raincoats ou as Slits. Nessa altura andei em digressão com os Joy Division, Gang of Four... Havia um espírito de entreajuda muito forte, como se estivéssemos todos debaixo do mesmo guarda-chuva. E esse disco é um bocado assim - embora tenham opiniões diferentes, muitas pessoas do underground acabam por colaborar em muitas ocasiões. Durante anos, senti-me muito afastado da indústria musical, daquilo que encarava como a máquina. E com este disco tive um sentimento de pertença, foi muito estranho. Sempre me senti à parte desde que deixei o Pop Group", salienta.

[caption][/caption]

Além do The Pop Group, outros grupos seus contemporâneos inspiraram uma nova vaga de projetos que, no início do milénio, mostraram uma clara herança da escola pós-punk. Uma homenagem inesperada, mas bem-vinda, conta-nos Stewart: "Acho muito estranho, mas interessante, que bandas pós-punk como os Gossip, LCD Soundsystem ou Radio4 tenham descoberto e citem como influência nomes comoThe Pop Group, Magazine, Public Image Ltd, Gang of Four… Foi uma altura em que houve muita música e cinema experimental que ainda estão a ser redescobertos, as pessoas ainda estão a voltar constantemente a esse período. É bom que isso aconteça, mas também um bocado esquizofrénico - não consigo analisar o fenómeno porque já não está nas nossas mãos, ganhou vida própria. Também ainda continuo a ouvir e descobrir bandas dessa altura - com muitas explosões de cor, novos sons de baixo, punk e funk".

Por vezes, essa influência reflete-se em artistas que nem estão assim tão próximos desses territórios. Artistas como St. Vincent, uma das maiores coqueluches recentes da indie pop, autora de uma versão de "She is Beyond Good and Evil", do The Pop Group. "Essa miúda tem qualquer coisa muito fixe. Gente como ela ou como o Devendra Banhart irradia magia. São fantásticos e é estranho que gostem de algo que tu fazes, de um estilo que não tem nada a ver", comenta Stewart.

Essa sensação de deslumbramento, de fascínio pela descoberta, palpável na forma entusiasta como falou destes e de outros artistas ao longo da conversa telefónica, mantém-se uma das constantes da sua ligação à música desde a alvorada do punk. "Quando estou em estúdio com músicos como o Lee Perry, nem consigo acreditar. Ainda sou aquele miúdo que está a ler o 'Hollywood Babylon' [livro de culto de Kenneth Anger] em casa da mãe. Não consigo acreditar na vida que tenho...".