RAYE foi a estrela maior do terceiro e último dia do MEO Kalorama. A britânica estreou-se em Portugal este sábado, dia 31 de agosto, e ofereceu tudo aquilo que os fãs esperavam. 

A cantora de Camden, que se tem afirmado como artista independente, subiu ao Palco MEO às dez da noite em ponto e foi recebida com uma calorosa ovação. Vestida de branco, desfilou até ao centro do palco e serviu “The Thrill Is Gone", do aclamado disco "My 21st Century Blues" (2023), que lhe deu uma nova força na carreira e a catapultou para o campeonato das superestrelas. O público cantou logo também, mas seguiram-se momentos de silêncio para ouvir a estonteante voz de RAYE.

Sempre sorridente e a aproveitar o momento, a artista seguiu depois “Worth It”, que carimbou o primeiro grande momento de comunhão com a multidão. 

“Estou entre duas canções: querem a ‘Oscar Winning Tears’ ou a ‘Hard out Here’”? Os festivaleiros ovacionaram as duas opções e a britânica optou pela primeira sugestão - e foi uma aposta ganha.

Acompanhada de uma poderosa banda e com um grandioso fundo com o seu nome, RAYE aproveitou todas as pausas entre canções para conversar e partilhar histórias com os fãs. “Gosto muito de falar”, confessou. E comprovou-o ao longo de toda a noite, ao apresentar curiosidades sobre os seus temas

Depois de “Oscar Winning Tears”, a cantora sentou-se na frente do palco para “Mary Jane”.

RAYE
RAYE RAYE créditos: Tomás Soares Nogueira

“Não sei porque vieram hoje a este festival, mas o meu palpite (...) é que foi para sentir alguma liberdade, alguma alegria, alguma endorfina. A música é um remédio. É curativa, calmante, bonita. A música salvou a minha vida e sei que não posso estar sozinha nisto. O tema desta canção é a agressão sexual, a violação e a violência sexual, que são palavras nojentas para dizer. Tão nojentas e tão feias que nos dão vontade de vomitar quando as dizemos em voz alta. É simplesmente nojento. Por isso, o que acontece é que aqueles de nós que sofrem esse trauma, não falam sobre ele. Simplesmente enterramo-lo profundamente, profundamente. E isso não é justo. Não é justo. Não é. E estou muito grata à música, por me ter salvo. Esta canção obrigou-me a ter uma conversa com os meus pais, a começar a refletir e a perceber que precisava de ajuda para sair de um poço escuro em que tinha caído”, desabafou antes de “Ice Cream Man”.

A viagem continuou com "Genesis", uma versão de "It's A Mans World", "Don't Know Me" e "Secrets". Sempre próxima do público, RAYE ficou surpreendida quando olhou para o relógio e percebeu que tinha pouco tempo. Tentou falar menos, mas deram-lhe mais uns minutos em palco e o público agradeceu.

Para o final, a britânica trouxe "Black Mascara", "Prada" e o grande sucesso da sua curta mas já fulgurante carreira, "Escapism". 

Durante uma hora, RAYE provou porque é que merece todos os elogios e mais alguns. O concerto no MEO Kalorama foi apenas uma amostra de todo o seu talento - ficaremos à espera de um regresso a solo, para desfrutar das poderosas canções e desta voz impactante.

ANA MOURA
ANA MOURA Ana Moura créditos: Tomás Soares Nogueira

Ana Moura a jogar em casa

Outro triunfo no feminino no Palco MEO, Ana Moura mostrou estar cada vez mais à vontade nas muitas divisões da sua "Casa Guilhermina". O espetáculo centrado no disco com o mesmo nome, editado há dois anos, acolheu tanto o fado como ritmos africanos, vincando a abertura de fronteiras que tem guiado a fase mais recente do percurso da cantora.

Muito bem acompanhada por três músicos (um deles o guitarrista Tomás Varela, dos Expresso Transatlântico) e seis bailarinos, uma das mais belas vozes a passar pelo festival brilhou em temas originais, clássicos da tradição fadista e versões. Mas a grande novidade foi o inédito "Desliza", a editar em breve, canção calorosa, dançável e "a mais ousada da carreira", ao ritmo de uma nova Lisboa. "Dança, dança, dança", repetiu a artista, mas nem precisava: boa parte do público que ia chegando ao recinto, ao final da tarde, aderiu de imediato a esta receção envolvente.

Fez sentido que "Desliza" fosse estreada depois de Ana Moura ter dado voz a "Te Amo", dos Calema, prolongando a ligação a África. Mas houve outros momentos especiais: "Loucura (Sou do Fado)" foi talvez o mais arrepiante, em modo a capella e com a multidão a respeitar o silêncio para ouvir a anfitriã - expressando-se depois com um das maiores ovações do concerto.

Também a despertar reações fortes do público, "Agarra em Mim" contou com Pedro Mafama, companheiro da cantora, para uma dança de cumplicidade e sensualidade, com embalo, provocação e um beijo no final (muitos espectadores não pouparam nos gritos e aplausos, mais uma vez).

Nesta casa couberam ainda a recente "Lá Vai Ela", a canção-chave da viragem estética e sonora "Andorinhas", a festiva "Desfado" (único recuo a um passado mais distante) ou a melancólica "Arraial Triste".

ANA MOURA
ANA MOURA Ana Moura créditos: Tomás Soares Nogueira

Particularmente emotiva, "Mázia" reavivou memórias agridoces. "Esta canção é dedicada a uma das mulheres mais importantes da minha vida", disse Ana Moura, referindo-se à sua prima Cláudia, já falecida, que a ajudou a vencer a timidez num bar de karaoke muitos anos antes de "Casa Guilhermina" estar projetada. "Um dia, quando for famosa, vou escrever uma música dedicada a ti e a toda a alegria que me trazes", prometeu na altura a artista, após ter sido atirada para um palco sem estar à espera. A timidez pode nem ter desaparecido, mas esta voz soa-nos cada vez mais segura do seu caminho.

O rock não morreu, graças a dEUS

Outro ponto alto do último dia do MEO Kalorama, o concerto dos dEUS no Palco San Miguel foi um bálsamo para quem ainda tem fé nas guitarras. A banda belga continua a tratá-las tão bem que pode ter deixado aqui o melhor concerto de rock do festival, o que nem surpreende. Tendo em conta que a atuação no Coliseu de Lisboa, no ano passado, não tinha sido menos do que estonteante, e que estes veteranos se têm mantido um nome de confiança desde que se tornaram um fenómeno de culto por cá em meados dos anos 1990, era legítimo ter expectativas elevadas.

Ao contrário dos The Kills, que atuaram na véspera no mesmo palco, também ao final da tarde, o quinteto de Antuérpia deu-nos tudo a que tínhamos direito. Ou pelo menos, tudo o que cabia num espetáculo com duração limitada. "Só temos uma hora, então vamos continuar, não?", questionou Tom Barman assim mesmo, em português, a meio da atuação antes de disparar "Instant Street", cujo crescendo (de guitarras, lá está) tem sido infalível desde o clássico "The Ideal Crash" (1999), o terceiro álbum do grupo.

Numa altura em que regressaram já com o oitavo longa-duração bem rodado ("How to Replace It", editado há um ano), os dEUS já têm em vista o nono, contou Tom Barman em entrevista ao SAPO Mag a publicar em breve. Mas não houve sinal dele num concerto que abriu em alta, com a faixa-título do álbum mais recente, e que nunca desceu desse patamar enquanto revisitou vários episódios de uma discografia sempre estimável.

dEUS
dEUS dEUS créditos: Tomás Soares Nogueira

Do tom sinuoso e cinematográfico de "Quatre mains" (cantada em francês) à mais ritmada e trauteável "The Architect", passando pelo ambiente bas fond, jazzy e ébrio de "W.C.S (First Draft)" ou pelo para-arranca esgrouviado de "Fell Off the Floor, Man", não houve um passo em falso num alinhamento que jogou uma das cartadas mais fortes na despedida, com a explosão de "Bad Timing".

"Dá graças a Deus por estarem cá", comentava um espectador à saída. O trocadilho não é novo, e a maioria destas canções também não, mas no caso em apreço torna-se muito difícil não concordar com ele.

Yves Tumor, agressão com açúcar

Se os dEUS trataram bem as guitarras ao cair da noite, Yves Tumor prolongou o mergulho elétrico já de madrugada, fechando o Palco Lisboa naquele que foi o último concerto do festival. O último e um dos mais efervescentes, culpa de um caldeirão sónico que tem misturado heranças new wave, shoegaze e industriais depois do percurso mais psicadélico e experimental do norte-americano.

"Praise a Lord Who Chews but Which Does Not Consume; (Or Simply, Hot Between Worlds)" (2023), o quinto disco do artista residente em Turim, na Itália, trouxe uma viragem inesperada para canções tão imediatas como revigorantes. Se os LCD Soundsystem, na noite de sexta-feira no Palco MEO, foram metódicos e pacientes na gestão rítmica, demorando o seu tempo a atingir zonas de prazer auditivo máximo, Yves Tumor atirou logo a matar em quase todo o concerto. Ao lado de uma banda com um visual a meio caminho entre o gótico e o metal (sobretudo um guitarrista de longos cabelos pretos perito em riffs monumentais), serviu distorção em ponto de rebuçado, de gratificação imediata, despudorada e sem medo de ecoar influências.

Yves Tumor
Yves Tumor Yves Tumor em Bogotá, Colômbia, em março de 2024 créditos: Lusa

A viagem de uma hora tanto lembrou The Cure como Smashing Pumpkins, Deftones, Nine Inch Nails ou... Lenny Kravitz de finais dos anos 1990. Curiosamente, a aproximação ao autor de "Fly Away" foi mais do que musical: tal como Kravitz há uns anos, Tumor rasgou acidentalmente as calças durante o espetáculo e temeu revelar demasiado. "Se acontecer, finjam que não viram", pediu, mas não parece ter havido risco de um novo fenómeno viral por motivos menos nobres.

Apresentando-se com um hoodie, de capuz e óculos escuros, além das tais calças de cabedal, foi trocando uma postura inicialmente algo distante por uma aproximação crescente ao público. E acabou por sair do palco para o meio dos espectadores em "Operator", a segunda canção da noite minada por um falso arranque. "Estão a pagar demasiado por isto", brincou. Nada que pareça ter incomodado alguém, a julgar pela comunhão no final do tema, com artista e público a gritar "Be Aggressive" (citação do coro do clássico homónimo dos Faith No More, outra banda que terá ajudado a moldar esta fase que teve headbanging constante como reação generalizada).

Afrobeats via Burna Boy e nova música de dança britânica e latina

Pouco antes de Yves Tumor e do B2B de DJ Glue Shaka Lion (substituição dos cancelados Soulwax no Palco San Miguel) assegurarem as despedidas desta edição do MEO Kalorama, Burna Boy foi o último nome a atuar no Palco MEO. Mas a moldura humana em torno do espetáculo do nigeriano revelou-se nitidamente mais discreta do que a que acompanhou RAYE e, sobretudo, nomes que passaram pelo mesmo espaço nos dias anteriores. Talvez porque esta proposta entre o dancehall, o hip-hop e afrobeats surja algo deslocada num cartaz que, embora de vistas largas, pedia outra escolha no maior palco numa noite de sábado. Em todo o caso, o entusiasmo do artista e das dezenas de colaboradores (entre músicos e bailarinos) foi evidente, assim como a vontade do público da plateia se juntar à festa.

Quem procurou outras opções na reta final do festival também não ficou mal servido no departamento da música de dança. Os Overmono, coqueluche da nova geração britânica, estiveram à altura do estatuto ao convidarem a uma rave a céu aberto no Palco San Miguel. Conhecedores das movimentações rítmicas nascidas em terras de Sua Majestade nos inícios da década de 1990, souberam atualizar a receita numa conjugação inspirada de techno, breakbeat, grime ou UK garage. O final, a cargo de "Good Lies", faixa-título do álbum de estreia (editado no ano passado), foi de êxtase, com receção calorosa de um público de várias faixas etárias. Ganharam certamente novos admiradores, os irmãos Tom e Ed Russell.

Noutro comprimento de onda, Brian Pineyro, mais conhecido como DJ Python, foi das propostas mais sonantes do Palco Panorama, vocacionado para oferta tão dançável quanto arrojada. Quase escondido entre árvores numa das pontas do recinto, o espaço motivou uma espécie de mini festival dentro do festival, a acolher espectadores mais jovens. E o artista que teve a missão de o encerrar guiou-se por cadências insistentemente percussivas, promovendo encontros entre a tradição latina e a pista de dança sem ter o reggaeton como destino único.

Já a destacar-se entre as primeiras atuações do dia, Cláudia Pascoal animou o Palco MEO com uma energia contagiante. A artista celebrou temas do seu segundo álbum, "!!" (2023), com os fãs - "Eh Para a Frente, Eh Para trás" e "Nasci Maria" foram dois dos mais aclamados. Dedicou ainda um momento a "Extremamente Desagradável" - Cláudia Pascoal é a voz do tema do podcast de Joana Marques - e apresentou também "Três É Demais", canção que gravou com Rebeca e Mike El Nite, este último convidado em palco para o momento de festa popular antes do arraial sensual de Ana Moura.

Yard Act, Moonchild Sanelly, Fabiana Palladino, Bandalos Chinos e Brisa, entre outros, também atuaram no final da terceira edição do MEO Kalorama. A quarta já está confirmada, para 2025, em data a anunciar. Espera-se que nessa a organização repense o pagamento cashless como modelo único e questões de acessos ao recinto e WC que levaram a longas filas nos dias mais concorridos, algumas das principais queixas dos espectadores.