
Culpem as francesinhas. O vizinho do prédio que decidiu trocar de porta às oito da matina, obrigando a um descanso forçado pós-almoço. A hora de ponta que fez com que Matosinhos parecesse ficar à distância de Braga. A verdade é que só conseguimos meter os pés no recinto antes dos Local Natives começarem a sua atuação, mas bem ainda a tempo de ver a história da música escrever mais um dos seus gloriosos capítulos. Mas vamos por partes e comecemos pelo princípio, ainda o sol se esticava lá no alto.
Os Local Natives são uma salada de frutas musical, feita com frutos de primeira apanha: o lado operático dos Wild Beasts, o desejo épico dos Arcade Fire, a veia melancólica dos The National, o experimentalismo dos Grizzly Bear, as paisagens campestres dos Fleet Foxes. Tudo muito bem cortado e com a adição de uma calda secreta, que faz desta sobremesa vitamínica uma das mais entusiasmantes propostas da folk que se dedica ao despertar de saltos. Estiveram bem os rapazes, elogiando os nativos locais pela visita guiada à cidade, trocando de instrumentos muitas vezes, não se importando de emprestar os brinquedos favoritos uns aos outros. A continuar assim, temos banda para florir dentro de um ou dois discos.
«There are millions of stars...» Foi com este prenúncio de história infantil que os Swans tentaram enganar os leigos, julgando estar prestes a ouvir uma daquelas historietas de encantar ideias para iniciar o correr das pestanas. Porém, a partir do momento em que os primeiros riffs de guitarra incendiários coincidiram com o kick furioso da bateria, não mais as ondas sónicas deixaram de afluir em vagas assustadoras ao Parque da Cidade, como se as águas de Matosinhos tivessem decidido juntar-se à festa. Quem se habituou a dizer que depois da tempestade vem a bonança, provavelmente nunca ouviu um disco destes senhores. Três guitarras, duas baterias, teclados, um estranho violino e uma encantatória trompa, anunciando a chegada do Apocalipse de sorriso nos lábios. Quando pensarem numa versão em 3D e em modo Director`s cut do “Cisne Negro”, a banda sonora está garantida. Não estranhem se hoje houver uma corrida desenfreada aos otorrinolaringologistas locais, dado o esquecimento do aviso sobre a obrigatoriedade do uso de protectores para os ouvidos.
Imaginem Kevin Parker a pegar no psicadelismo dos Tame Impala, piscando o olho a Alex e Victoria, a dupla tecedora de sonhos que tem uma casa na praia. O resultado poderia ser qualquer coisa como Melody`s Echo Chamber, banda encabeçada pela sensual Melody Prochet, que apresentou o seu disco de estreia do palco Pitchfork. Picámos apenas o ponto, mas ainda tivemos tempo de ouvir a menina despedir-se na língua de Baudelaire. Au revoir Melody, marcamos encontro para um lugar mais sossegado (quem sabe o Lux).
Diz-se que a hibernação faz bem aos ursos. Nada como uns bons meses passados numa gruta, sonhando com dias mais quentes de barriga para o ar. Em relação aos Grizzly Bear, a transição de “Veckatimest” para “Shields” trouxe-lhes uma quantidade considerável de cabelos brancos (ou cinzentos), num disco que foi uma pequena ruptura com o anterior e provocou a debandade de alguns fãs. Como se da onda experimental com uma costela a la Animal Collective se tivessem decidido aproximar mais de uns Beach Boys. Ontem, os Grizzly Bear ganharam o ar de uma boys band alienígena, enfeitando a beleza de quatro vozes – aqui até o baterista canta – com doses poéticas de experimentalismo onde cabem teclados etéreos, guitarras planantes e uma bateria que embrulha tudo num bonito papel com direito a laço. Sem provocar grande alarido, tivemos aqui um pequeno grande concerto. Que hibernem outra vez e voltem bem descansados para o ano.
De todas as bandas com uma longevidade a rondar os 20 anos, e mesmo para lá disso na história da música pop, poucas terão reflectido o processo de crescimento, assim como a evolução da música, como os Blur. Tivemos a rebeldia e a acne de “Leisure”, a crítica social em “Modern Life is Rubbish” e “The Great Escape”, um olhar existencialista e algo desencantado com “Think Tank”. Sem editarem um disco de originais há uma década - ainda que se fale em disco novo para este ano -, os Blur regressaram à vida attiva em 2012, com alguns temas novos e concertos em crescendo. O concerto do Optimus Primavera Sound mostrou uma banda em estado de graça que, como diz um dos seus temas, não vive neste nem noutro tempo.
«Girls & Boys» abriu o cardápio, aproveitando Damon para regar as filas da frente, de uma ponta à outra, com várias garrafas de água; «Beetlebum» fez nascer o desejo de um coro primaveriano, aparecendo também as primeiras guitarras flamejantes; «Coffee and TV» dá-nos uma troca de olhares cúmplices entre Damon e Graham, e torna-se difícil acreditar que estes dois já andaram de costas voltadas durante anos; «Country House», em tempos o tema maldito para os Blur, foi servido em apoteose, com Damon no meio do público e de coroa floral na cabeça, mostrando que as raízes não são para ser negadas; mas houve também a perfeita e lacrimejante «The Universal» ou a incendiária «Song 2», capaz de soltar toda a poeira num raio de quilómetros.
Se, no primeiro dia, Nick Cave tinha oferecido um pesadelo sublime e reconfortante, os Blur brindaram-nos com uma festa que teve tudo de celebração, num concerto de todo o tamanho onde se berrou a plenos pulmões as letras de uma ponta à outra. Não há que ter medo em dizê-lo. Os Blur são uns eternos fab four. Não de Liverpool, ou sequer de Inglaterra. Pertencem a cada um de nós e ao mundo inteiro. Whoohoo!
Texto: Pedro Miguel Silva
Fotografias: Anais F. Afonso
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