“Walk This Way” foi um tema gravado em 1975 pelos Aerosmith, que conheceu, na década de 80, uma versão que incluía também os rappers Run-D.M.C.. Essa foi,segundo descrevem os livros, a primeira mistura entre o rock e o hip hop. Se há mais de 30 anos atrás essas duas bandas nos mostraram que não existem limites na música, então os Orelha Negra reforçam essa ideia de dia para dia. E foi, curiosamente, ao som de “Walk This Way” que a entrada para o concerto de quinta-feira, no piso de baixo da discoteca Lux Frágil, foi efetuada.

O imaginário da banda é tão vasto que nos consegue explicar pormenorizadamente como é possível viajar no espaço e no tempo, rasgando além fronteiras, através dos medleys que protagoniza. No primeiro da noite, o coletivo mostrou que existe hip hop em Screamin’ Jay Hawkins, reggae em Otis Redding, soul em Damian Marley e rock em nomes como Nas, Jay-Z, Pharoahe Monch, Kanye West ou em grupos como Wu-Tang Clan. A pergunta que os Orelha Negra nos colocam quando fazem tais misturas é simples e eficaz: e por que não? Por que não juntar música só pela música, desobedecendo deliberadamente a todos os preconceitos e barreiras? É esta a chave do sucesso do coletivo constituído por Sam the Kid, DJ Cruzfader, João Gomes, Fred e Francisco Rebelo, que oleva a ser amado por uma comunidade que não se restringe estilisticamente.

Do repertório discográfico pudemos ouvir, a abrir, a calma e consistente “Viva Ela”, que nos levou até “Polaroid”, uma canção que se revela numa autêntica aula de ritmo por parte de Fred. Destaque ainda para a inevitável e belíssima “Throwback”, a doce e penetrante “M.I.R.I.A.M.” e para “Memória”, também conhecida como “Since You’ve Been Gone” devido ao contributo vocal de Orlando Santos para a primeira mixtape do coletivo. “You got me singing the blues” é a frase que acompanha e introduz “Jura”, que, como sempre, vem carregada de um misto sentimental que delicia os nossos ouvidos a cada vez que é tocada. E ainda “Luta”, cheia de groove e energia, ópio para os presentes que, depois da inesperada chuvada que se fez sentir minutos antes do concerto, procuravam alguma forma de aquecer corpo e alma.

De volta aos medleys, mas desta vez em terras de Camões, os Orelha Negra homenagearam os Mind Da Gap – que curiosamente completam vinte anos de carreira neste ano que decorre – através de uma revisita que juntou canções como “Falsos Amigos”, “Todos Gordos” e “Dedicatória” a outros êxitos de hip hop nacional, como “Canal 115”, do álbum “Serviço Público” de Valete, e “Rhymeshit Que Abala”, clássico de Chullage retirado do álbum “Rapresálias”. Este foi um dos momentos que mais agitou o público, com algumas pessoas a cantarem as letras das músicas por cima dos instrumentais. O poder da língua portuguesa a ser evidenciado...

“A Cura” talvez seja uma das canções mais vigorosas e expressivas deste quinteto fantástico, revelando um grande à vontade e uma coordenação de se louvar por parte dos elementos – as quebras rítmicas e alterações na velocidade são autênticas rasteiras a quem tenta acompanhar de forma sincronizada a cadência da música. Para o final, como não podia deixar de ser, dois dos medleys mais populares dos Orelha Negra. O primeiro começa com o sample “Gangsta Boogie”, dos Chicago Gangsters, e viaja por vários universos musicais; e o segundo junta Beastie Boys, Jackson 5 e House Of Pain no mesmo habitat, com Fred a deixar bem claras as suas qualidades como baterista já na reta final do tema. De cortar a respiração.

Os Orelha Negra, que lançaram recentemente a “Mixtape II”, que cruza mundos tão diversos como Mónica Ferraz, Osso Vaidoso, Valete, Regula, Kika Santos e DaChick, entre outros, voltam a comprovar que tudo é possível quando abrem horizontes e abandonam a sua zona de conforto, partindo em descoberta de outras áreas musicais que os possam influenciar. Tal como os Aerosmith e os Run-D.M.C. arriscaram na década de 80 com “Walk This Way”, este pentágono lusitano arrisca na sua música e deixa claro que ainda estará para vir o dia em que um concerto deles não seja bom.

Manuel Rodrigues