O músico e produtor Francisco ‘Fininho’ Sousa, que se apresenta como um ‘digger’, é um escavador de temas perdidos.
Chegou o convite da editora Heavenly Sweetness para juntar a música de Cabo Verde e Guiné-Bissau, depois de ter feito a compilação "Space Echo", em 2016.
Daí nasceram os Bandé-Gamboa e o álbum “Horizonte”, lançado em junho de 2020, dedicado a Amílcar Cabral, “o pai da nacionalidade de Cabo Verde e Guiné-Bissau”, destaca Francisco.
“É uma figura invisível em Portugal, que ainda é vista como uma espécie de inimigo de Estado. Salazar via os movimentos de libertação como bonecos manipulados pela URSS e por Cuba. Não percebia que era ao contrário. (…) Amílcar tinha uma mensagem humanista. No Estado Novo, as únicas referências ao Amílcar era como criminoso de guerra, um guerrilheiro. Ele é celebrado no mundo inteiro, nas melhores universidades do mundo”, prossegue.
A homenagem “é muito importante nos tempos que vivemos hoje”, considera, antes de ressalvar que “são músicas revolucionárias, algumas, outras não são de todo”.
Um projeto como este, que se assemelha ao de um arqueólogo, tem de ser olhado com responsabilidade e respeito pelas outras culturas.
“Hoje, tenho algumas reservas sobre essa visão da África 'vintage'. Passou a ser um produto um bocado perigoso. Passou a haver assim uma espécie de construção, de identidade muito ‘cool’, muito fofinha, também, de África. Como a cultura do 'tropical music', que é uma cultura que não tem diversidade. Vais a uma festa e só tem europeus de camisas às flores…”
Passou “a levar isso mais a sério”, porque acredita que, enquanto país colonizador, “temos responsabilidade”.
“A trabalhar com música dos países colonizados, tens obrigações. Pelo menos, pegar nos livros e viajar, perceber o papel do Outro, temos de estudar as culturas e ter essa noção”.
Amílcar Cabral acaba por ser mesmo o que une as duas vertentes do projeto, já que o funaná e o gumbé “não têm uma ligação direta, musical”, mas o ideólogo do projeto achou que essa “era uma vantagem”.
Com as águas separadas, em concerto, a banda vai alternando entre um género e outro e também “Horizonte” vem com “dois discos separados, um de Cabo Verde e outro da Guiné”.
Até a dissidência chega de formas diferentes: “O funaná, quando nasceu, tocava-se durante a ocupação portuguesa, era música de libertação, mas não era diretamente revolucionária. Era mais o ritmo rápido e a forma como tocavam o acordeão que era uma ameaça, e por isso era proibido”.
Já “no gumbé, eram pelas letras, e por grupos assumidamente revolucionários”, adianta.
Também “o processo de gravação foi completamente diferente”.
Para o funaná, um estilo já amplamente conhecido na cena musical, o ‘digger’ esteve mais presente no processo, liderado pelo diretor musical Lúcio Vieira, que seguiu para “uma data de coisas mais arriscadas, se calhar um bocado arriscadas, porque o funaná permite isso”.
“A música de Cabo Verde abriu-se mais e deixou de ser só tradicional”.
Na música guineense, o caso é diferente. “O gumbé da Guiné-Bissau, ninguém sabe o que é. Cada um diz que é assim, cada um tem o seu estilo, e as pessoas não reconhecem. Em toda a costa africana há gumbé, e até mesmo dentro da Guiné-Bissau varia. Quisemos fazer um processo diferente do funaná. Vamos trabalhar o gumbé, mas de uma forma muito mais serena e conservadora, para que as pessoas o possam reconhecer. Para criar uma identidade, como no afrobeat, no reggae, para que daqui a uns anos reconheçam”, explicou.
Os Bandé-Gamboa são um grupo, mas funcionam como “duas bandas completamente separadas”.
Em palco, são oito, em estúdio, foram 17 os músicos que construíram o álbum que foi apresentado ao vivo pela primeira vez em Portugal no Palco Lusofónica do Womex.
“Agora, pela primeira vez, senti unidade na banda. Tivemos um concerto em Barcelona e este é o primeiro em Portugal. Já começa a haver alguma intimidade, alguma amizade”, confessa o responsável.
Os Bandé-Gamboa estiveram representados no Womex, onde atuaram, na esperança de que este não seja o único concerto, em Portugal e além-fronteiras.
A feira internacional de música do mundo, que terminou hoje, decorreu durante cinco dias no Porto, por onde passaram 2.600 profissionais da indústria da música e atuaram 60 artistas.
Comentários