Uma peça teatral do século XIX, dirigida pelo ator norte-americano John Malkovich, enfureceu os nacionalistas na Bulgária, que a consideram um insulto ao país - uma afirmação que a estrela de Hollywood rejeitou, considerando-a instigada pela extrema direita.
A estreia na semana passada de "Arms and the Man" ("O Homem e as Armas", em tradução literal), do famoso dramaturgo irlandês George Bernard Shaw, gerou protestos estridentes de grupos nacionalistas.
Segurando faixas que diziam "Malkovich, vai para casa", os manifestantes bloquearam o acesso ao Teatro Nacional Ivan Vazov, na capital Sófia, na quinta-feira, antes de tentarem invadi-lo, acusando o ator e encenador de 70 anos de ridicularizar a história do país e dos seus cidadãos.
"Esta peça é uma vergonha e deve ser proibida. Ela faz troça dos nossos antepassados que morreram pela Bulgária", gritou a estudante Yoana Ilieva, de 21 anos, no meio de uma multidão enfurecida.
Após a peça estrear numa sala quase vazia, Malkovich expressou o seu espanto com a forma como a sua produção foi recebida.
“É uma reação bastante estranha, mas é um momento estranho no mundo – cada vez mais pessoas adoram censurar coisas com as quais não concordam”, disse numa conferência de imprensa ao lado de vários atores no palco.
Brandindo bandeiras búlgaras, uma multidão de manifestantes furiosos agrediu verbal e fisicamente o diretor do teatro e o ex-ministro da Cultura, entre outros.
O Ministério Público abriu uma investigação sobre os confrontos.
Chamar a atenção
A peça é uma abordagem humorística do conflito servo-búlgaro no final do século XIX, explorando o absurdo da guerra e ao mesmo tempo expondo as falhas da adulação heróica e do militarismo.
É uma comédia “charmosa, leve e anti-guerra” que Malkovich já havia encenado na Broadway em 1985, disse à France-Presse (AFP) em entrevista.
O norte-americano acrescentou que achava que procurar a precisão histórica numa peça era "assustadoramente ingénuo".
Malkovich disse ter "certeza de que nunca insultei nenhum dos 47 países" onde trabalhou, acrescentando que tal acusação "só poderia ser feita por pessoas que não me conhecem".
“Acho que não tem nada a ver com a peça. E nem tenho certeza se é sobre mim, na verdade”, disse.
Segundo Malkovich, Shaw "não sabia nada sobre a Bulgária", dizendo que o dramaturgo "só queria um lugar para situar a guerra".
O ator disse acreditar que os manifestantes de extrema direita estavam a tentar chamar a “atenção das pessoas para as coisas que querem”.
Obstrução total à liberdade de expressão
A Bulgária, a nação mais pobre da União Europeia, tem sido atormentada por turbulências políticas desde 2021, o que favoreceu a extrema direita do país no meio de um aumento nas campanhas de desinformação pró-Rússia, de acordo com organizações não governamentais do país.
Para o partido pró-Rússia e ultranacionalista Vazrazhdane, a terceira maior força no parlamento, "não só a peça é medíocre", mas a produção também teve "uma encenação totalmente inadequada".
O sindicato conservador dos escritores búlgaros, SBP, disse que "tais obras" não tinham lugar na Bulgária, criticando o que considerou como "a troça dos milhares de soldados que caíram na frente pela liberdade e reunificação do país".
A peça já havia sido encenada duas vezes pelo encenador búlgaro Nikolay Polyakov em 1995 e 2000, sem provocar grande indignação pública.
“O clima atual é muito mais tenso, com paixões intensas e ódio incendiário contra tudo o que é ocidental e americano”, disse Polyakov à AFP.
Nikolay Hristov, um arquiteto de 66 anos que assistiu à comédia com a sua esposa na sexta-feira, disse que não havia "nada de antibúlgaro" na peça "divertida", acrescentando que era "mais sobre amor, mentiras e honra incompreendida".
A Associação Europeia de Artes Cénicas Independentes (EAIPA) condenou "a obstrução total à liberdade de expressão artística" por "ativistas de extrema direita, sob o pretexto de que fazia troça do orgulho nacional búlgaro".
“O aumento do ódio e da agressão na Europa é uma provocação direta aos direitos humanos básicos”, afirmou.
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