Desde o final do ano passado que as palavras “Inteligência Artificial” se tornaram de uso ainda mais comum do que aquele apresentado por filmes e séries, com a popularidade alcançada pelos grandes modelos de linguagem (‘large language models’, no inglês original) como o ChatGPT, o Bard ou outros.

Imagens criadas por IA, com solicitações humanas, têm ganhado prémios internacionais, revistas especializadas de ficção científica viram-se obrigadas a suspender a submissão de material por estarem a ser assoberbadas por contos gerados por IA, além de todas as dúvidas – é real ou é falso? - que têm suscitado imagens de figuras públicas em cenas inesperadas.

A Lusa falou com vários especialistas do setor das Artes para os ouvir sobre que expectativas têm acerca do impacto das IA no trabalho criativo. As opiniões vão do cauteloso ao otimista, com todos a fazerem a ressalva de que são especialistas em Arte e não em tecnologia.

A entrada das IA nas artes – visuais ou escritas – data da segunda metade do século XX, com o advento da computação, como lembrou à Lusa a curadora Marta Mestre, atual diretora artística do Centro Internacional das Artes José de Guimarães.

“Já nessa altura se começa a falar de sistemas inteligentes de escrita, de construção de imagem. Então, numa arqueologia da História da Arte, entendemos que esses desafios da máquina e do artista estão colocados. Se formos ainda mais para trás, os autómatos já eram objetos, num misto de ciência e da arte, que influenciaram os artistas séculos atrás”, disse a historiadora de arte.

A presença desses sistemas na Arte não é um fenómeno novo, portanto, levando Marta Mestre a nomear Silvestre Pestana ou Gabriel Abrantes entre os portugueses que recorreram a essas ferramentas na sua arte.

Também o artista Leonel Moura foi das figuras pioneiras em Portugal a trabalhar com IA. Para Moura, em declarações à Lusa, a IA "veio demonstrar que quem decide o que é arte ou não é arte não depende tanto do objeto ou do processo, mas do criador e da comunidade [artistas e agentes culturais] a aceitarem ou não”.

O artista português está convicto de que o processo da entrada da IA “é imparável” em todas as áreas.

Marta Mestre afirmou que a questão sobre se um objeto criado por uma IA é ou não arte deve ser deixada em aberto: “Essa dialética deve permanecer. Ela não deve ser respondida”.

O diretor do Museu de Serralves, Philippe Vergne, não vê com receio o futuro: “Os novos avanços tecnológicos criam sempre este medo. Um pouco como o que descrevemos quando falamos do sublime, algo que é maior do que nós e tem o potencial para nos destruir”.

“Para o meu campo, a verdadeira questão é se já produziu boa arte. Estamos obcecados com informação, rodeados por tanta informação que nem sequer a conseguimos processar de forma racional, por isso talvez uma máquina possa ser mais racional do que nós”, disse o francês à Lusa, nomeando os artistas Reifik Anadol e Ian Cheng como bons exemplos do que é possível fazer com as IA.

Vergne disse já ter visto obras criadas por IA que são “incrivelmente aborrecidas”, mas compara esse multiplicar de trabalhos à poluição, da mesma maneira que o escritor norte-americano Ted Chiang comparou a escrita dos grandes modelos de linguagem a um ficheiro de imagem comprimido, ou seja, com perdas.

Tal como Marta Mestre se refere ao recurso a tecnologias como forma de rutura, como pontos de partida e não de chegada, também Vergne lembra as várias maneiras como a Arte se foi desafiando ao longo das décadas, desde o urinol de Marcel Duchamp à Pop Art ou até mesmo à própria fotografia enquanto meio.

O realizador Edgar Pêra compara a IA a uma ferramenta, como um martelo, ou a uma inovação, como a eletricidade, e lembra que tudo decorre de “atividade humana e não das máquinas”.

“As pessoas de repente acham que vai aparecer o ‘Terminator’ ou o ‘Matrix’, em que as máquinas se apossam dos humanos. O que eu vejo apenas é o capital em ação. […] A alucinação é acharmos que as máquinas existem enquanto seres, isso é que o lado de delírio! Se vai desaparecer ou não, depende dos humanos e não das máquinas”, defendeu, em declarações à agência Lusa.

Edgar Pêra atribui a responsabilidade desta tecnologia somente a quem a usa, e no caso das artes considera que os criadores podem aproveitar o que de mais interessante pode ter: “Cada vez que surge uma evolução tecnológica qualquer, abrem-se novos caminhos. O ‘Citizen Kane’ [filme de Orson Wells, de 1941] não existia se não houvesse grande angular”.

“Ir contra a convenção pode ser um sinal de que há algo realmente interessante, realmente novo e que ainda não estamos equipados para processar”, afirmou Vergne.