“Ocupação” também porque com este trabalho querem “ocupar um espaço que não existia” e mostrar como “duas bichas que vêm dos subúrbios de Lisboa” ocupam o centro e ultrapassam a barreira dos subúrbios para a cidade e reclamam um lugar dentro de um património cultural secular, que é o fado.
Na entrevista à Lusa, o mote para a conversa é o álbum de estreia, que é editado nas plataformas digitais a 3 de junho e mais tarde em vinil, onde a música é a forma de arte através da qual João Caçador (composição e instrumentos) e Lila Fadista (voz e letras) fazem dissidência, criam referências e “uma nova forma de existir que rompe com o cânone”.
“O álbum chama-se ‘Ocupação’ e simboliza muito bem esse processo não só de ocupar um espaço que não existia, sentar, puxar uma cadeira que não estava lá e sentarmo-nos à mesa, ocupar um património com os nossos corpos”, explicou Lila Fadista.
Sublinhou que se trata também de ver o termo ‘ocupação’ não só na vertente física, de trabalho, mas também de ocupação de um lugar na própria história pessoal.
“O álbum traduz as formas como achamos importante fazer essa ocupação, invocando o passado com músicas como o ‘Requiem para Valentim’, sobre o Valentim de Barros [bailarino e homem gay português institucionalizado à força e sujeito a tratamentos contra a sua vontade], a ‘Medusa’ invoca a Gisberta [mulher trans morta por um grupo de adolescentes, no Porto] e, invocando também o futuro, trazendo novas formas de pensar o que é e o que significa ser queer [minorias sexuais e de género] em Portugal”, destacou.
João Caçador apontou como há “um ato quase de sobrevivência” em todas as pessoas LGBTI (Lésbicas, Gay, Bissexuais, Trans e Intersexuais) que crescem em Portugal, onde quase nada nem ninguém está preparado para as receber, desde as famílias, ao sistema de saúde, educação ou a cultura em geral.
“Nascemos aos trambolhões e crescemos nesses trambolhões, chegarmos e ocuparmos um lugar que faz parte do centro, um património histórico como o fado, mas também um património cultural, musical, social e ocuparmo-lo é uma vitória muito grande e é um ato de resistência, é um ato político, obviamente, mesmo que não quiséssemos”, sublinhou.
Salientou que “o ponto mais importante” do álbum está no facto de “criar um símbolo”, já que a história das pessoas LGBTI “é feita de vazios”.
Lila é disso também exemplo, já que quando começou a cantar percebeu que não o poderia fazer “sem ter de fazer concessões” ou “esconder alguma coisa”, o que a levou a uma marginalidade obrigada porque não cantar fado não era hipótese e só fazia sentido se o fizesse “por inteiro”.
A participação no Festival da Canção, da RTP, abriu-lhe a porta para entrarem em casa de milhares de portugueses “sem concessões”, o que, na perspetiva da dupla, foi um momento que causou debate e incómodo.
As reações também diferiram e se Lila achou desde o início que não passariam à final, João admitiu ter ficado perturbado e triste “pela parte de esperança que poderia ter provocado [nas pessoas LGBTI] a passagem à final”.
“A nossa música trazia uma riqueza para além da questão musical e não valorizarmos isso para nós também é muito importante, num momento em que o país tem 12 deputados do Chega [no parlamento] e nós não valorizamos uma proposta que vem falar sobre isso”, defendeu João Caçador, para quem, ainda assim a prestação serviu para “dar um pontapé na porta”.
Lila recordou como a música “Lisboa não sejas racista” faz todo sentido num momento em que Portugal tem “um partido com narrativas flagrantemente fascistas e xenófobas como terceira força política”.
Não temem, por isso, em assumir-se como “projeto de intervenção”, desenvolvendo um “trabalho ativista” contra “um silenciamento histórico” que empurra as pessoas LGBTI para uma vivência marginal da sua sexualidade, “completamente desligada dos afetos”, sublinhando que até 1982 a homossexualidade era crime em Portugal e até aos anos 90 do século passado era considerada uma doença.
Se para Lila “é muito interessante” como a despenalização da homossexualidade em Portugal acontece oito anos depois do 25 de Abril de 1974, João Caçador defendeu que essa data sirva para criar memória e lembrar o caminho feito até aí, “discutindo-a no presente de uma forma concreta”.
E como o álbum é ponto de chegada, pelos cinco anos de trabalho, mas também de partida, como “lugar de memória e de dissidência para as gerações futuras”, o objetivo está traçado: “Continuarmos a ter esta prática de refletirmos as nossas preocupações que estão à nossa volta”, uma realidade que, tal como sublinhou João Caçador, faz parte da alma do fado.
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