Se os Kraftwerk cantavam "We Are the Robots" em finais da década de 1970, num dos primeiros hinos pop a ter a eletrónica como ferramenta, Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter dariam corpo a essa ideia já a caminho do fim do milénio. As máscaras de robôs com as quais a dupla parisiense se apresenta desde que abandonou a banda de rock do liceu para se entregar à música de dança (mesmo que com recuperações ocasionais das guitarras) será o complemento visual mais apropriado, e sem dúvida o mais icónico, de uma obra musical diretamente ligada à tecnologia - da instrumentação aos videoclips, passando pelas atuações - e a abrir caminho para algumas transfigurações do cenário pop dos últimos anos.
E tudo começou com "Homework", o primeiro dos quatro álbuns de estúdio dos Daft Punk. O tal que recuperou, a 20 de janeiro de 1997, dois singles editados poucos anos antes, "Da Funk" e "Alive", e os juntou a um alinhamento de inéditos que expandiu a paleta sonora e alargou o burburinho em torno do duo. Se "Da Funk", em particular, já tinha sido um sucesso comercial considerável, indo além do circuito relativamente restrito da música de dança local, os outros cartões de visita do álbum encarregaram-se de ir ampliando o efeito.
Temas como "Revolution 909", "Burnin'" ou "Fresh" foram montra da fusão (quase sempre instrumental, ou com vozes usadas como instrumento) devedora do electro, da house, do techno ou do disco, combustível de um álbum enérgico, a conciliar pragmatismo dançável, alguma sensibilidade pop (reforçada no registo seguinte, "Discovery", de 2001) e uma faceta agreste a fazer a ponte com o rock (conferir nos petardos "Rollin' & Scratchin'" e no auto-explicativo "Rock'n Roll"). Não admira, por isso, que muitos adeptos das guitarras apontem a estreia dos Daft Punk como um dos primeiros contactos com a música de dança, a par de álbuns dos britânicos Prodigy, Chemical Brothers, Underworld ou Orbital, outros nomes fulcrais na diluição de fronteiras de géneros e públicos ao longo dos anos 1990.
Mas a ter de eleger a jóia da coroa de "Homework", "Around the World" impõe-se como a canção incontornável na consolidação de uma popularidade global, atirando o álbum para os lugares cimeiros das tabelas de vendas graças a um crescendo rítmico imediato e viciante ancorado na repetição do título (e de Fatboy Slim aos Avalanches, passando pelo Wamdue Project, a repetição de uma frase seria estratégia de muitos singles dançáveis pouco tempo depois, mesmo que os Daft Punk não tenham sido pioneiros nessa vertente). O videoclip assinado por Michel Gondry também ajudou, como aliás aconteceu com os de outros temas do disco, todos acolhidos de braços abertos pela MTV e outros canais de música da época - e com a imagem a impor-se como aliada fulcral do fenómeno, para além das máscaras robóticas de Homem-Christo e Bangalter.
Esse impacto tornou os Daft Punk na referência mais emblemática de uma geração francesa intrigada com as possibilidades da música eletrónica, a vincar o então designado "french touch" também presente nos singles e álbuns de Etienne De Crécy, Dimitri from Paris, Laurent Garnier, Motorbass ou St Germain. Air, Cassius e Mr. Oizo, entre outros, também teriam direito a explosão global um ou dois anos depois do caminho percorrido por "Homework".
A influência não esmoreceu com a viragem do milénio: a música dos mais recentes Justice, Vitalic, Boys Noize ou Digitalism seria certamente muito diferente sem este álbum. E uma editora francesa como a Ed Banger, de Pedro Winter (o manager dos Daft Punk na altura), talvez não pudesse apostar tanto na combinação de house, electro ou rock, de resto tornada prática corrente no cenário pop atual através da EDM e da elevação de DJs (alguns com máscara) a super estrelas. E se as últimas derivações dessas linguagens mostram que a fórmula parece já demasiado recauchutada e esgotada, o embalo rítmico (e às vezes melódico) de "Homework" soa tão fresco e urgente hoje como nos tempos em que dois robôs meteram o mundo a dançar.
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