O espetáculo resulta de um convite do Teatro Nacional D. Maria II (TNDM), em Lisboa, ao criador, e vai estar em cena na Sala Garrett de 3 a 13 de março, em estreia absoluta.

Para criar "Lisbon, My Lisbon", Faustin Linyekula foi ao encontro de artistas que um dia chegaram a Lisboa, vindos de outro local, para explorar a relação íntima que têm gerado, cada um à sua maneira, com esta cidade.

Diogo Cardoso, Fernando Chainço, Janice Iandritsky, Joana Pialgata, Nádia Yracema e Valentina Parravicini são os 'performers' e cocriadores que, em palco, abordam essa relação com a capital portuguesa neste espetáculo contruído em conjunto com Linyekula.

“O trabalho resulta desta minha jornada com Valentina, Fernando, Janice, Nádia e Diogo. É como se eu estivesse a fornecer uma moldura, convidando-os a nela habitar, com quem eles são, e eu construo a partir disso, mas construo a partir da minha maneira de contar histórias”, disse o coreógrafo aos jornalistas, no final de um ensaio para a imprensa.

Sobre a abordagem explorada neste espetáculo, Faustin Linyekula explicou que quis colocar as pessoas no centro, em vez de conceber uma produção pensada para um espaço específico.

“Algumas pessoas fazem trabalho ‘site specific’, mas eu gosto de fazer ‘people specific’”, afirmou.

O resultado é uma performance de teatro e dança, com uma forte simbologia social e política, abordando temas como migrações, racismo, guerra, discriminação ou pobreza.

Este diálogo sobre memórias, individuais e coletivas, e sobre ruínas, as que deixam para trás ou aquelas em que os próprios se transformam, é o tom dominante de uma encenação em que cada artista conta a sua própria história e a sua relação com Lisboa.

Em cena há música e dança, há vários espelhos, e seus reflexos, há dor e alegria, há sarcasmo e ironia.

O espetáculo começa com uma espécie de preâmbulo, feito por Valentina Parravicini, sobre uma história de “lama, morte, ruína e… uma palavra que não se pode dizer”.

Essa palavra é “preto”, contrapõe Nádia Yracema, artista oriunda de Angola.

E essa história de “lama e ruína”, de “pretos que sofrem e que morrem é a história do Congo: o Congo não existe, é um espelho estilhaçado pela História, cujos fragmentos foram espalhados pelo mundo”, continua Valentina.

Nesta apresentação inicial, afirma-se que “há países que mudam de nome, como se muda de sapatos”, pois a atual República Democrática do Congo já foi Estado Livre do Congo, Congo Belga, República do Congo, República Democrática do Congo e República do Zaire, antes de voltar ao nome que é o seu atual.

“Façam uma festa com a ruína das minhas memórias, é para isso que aqui estamos. Bem-vindos à nossa festa, bem-vindos à nossa Lisboa”.

Esta frase dá o mote para o início daquilo que é a apresentação que, à vez, os artistas vão fazendo de si próprios, contando a sua história, enquanto por detrás há espelhos em movimento e há corpos que se mexem, que se expressam e dançam.

Alternadamente, ecoam vozes que gritam “bem-vindos a Lisboa” e “tem os papeis?”

É encenado um grande jantar, durante o qual os artistas vão brindando à cidade de Lisboa, a “magnifica cidade” que os “acolheu”, começando por enaltecer a sua luz, as sete colinas, as calçadas, as igrejas, o elétrico 28, os pastéis de Belém e o Padrão dos Descobrimentos.

Num crescendo de euforia, os brindes sucedem-se: ao cheiro a sardinhas, à Rua das Pretas, a “esta cidade com ruas cheias de sangue que ainda vê pretos morrer”, à guerra do Ultramar, à cidade das obras que nunca mais acabam, a todos os que cruzam os mares e ficam sem casa, e “um brinde às pessoas que votaram…”.

Esta alusão a um partido que fica subentendida regressa no final, quando Nádia Yracema afirma ser do “partido que se recusa a esquecer” e diz que não vai fazer mais nada, não vai limpar, não vai arrumar, não vai cuidar de crianças: “Chega! Hoje é a última vez”.

No final, falando com os jornalistas, Nádia contou que é originária de Cabinda - pelo que “partilha a mesma floresta” com Faustin –, e que se revê e encontra neste trabalho conjunto.

“É um espaço de segurança para partilha do que somos, para trazer os pedaços das nossas ruínas”.

Sobre a cidade de Lisboa, onde se sente acolhida, mas que não escapa às farpas que lhe são lançadas, a artista reflete: “Não é por ser casa, que não devemos ter um olhar crítico sobre o local”.

Quase no final do espetáculo, Fernando Chainço protagoniza um monólogo em que evoca memórias de antigo combatente, enquanto Diogo Cardoso e Nádia Yracema entoam “Strange Fruit”, música anti-racista, de 1939, alusiva aos linchamentos de afro-americanos, que ocorreu principalmente no Sul dos Estados Unidos, mas também noutras regiões do país.

Aos jornalistas, Fernando confessou que o que o “escandaliza” é que em Portugal se tenha chegado ao ponto de “passar as linhas vermelhas”, aquelas que deveriam ser intransponíveis, e se ter chegado ao ponto de “deitar fora” conquistas da revolução.

Apesar da carga simbólica do espetáculo, Faustin rejeita que esteja a tentar passar alguma mensagem específica, relegando esse papel para o público e para a forma como o interpreta.

“Permite várias leituras e é a audiência que vai fazer a sua própria viagem. O que eu faço é criar um espaço para ouvir e para abrir os olhos”.

Sobre a sua estada em Lisboa, que dura há cinco anos, Faustin afirma que se sente “em casa”, porque é uma cidade com a qual se sente “conectado”, depois de ter vivido em Paris.

Na capital francesa, cansou-se de ser tratado com arrogância, de ser olhado de cima, de sentir-se “pequeno”, a mesma sensação que lhe era incutida na cidade de Berlim, como contou.

“Portanto, vir para Lisboa, capital da Europa que não podia ser arrogante, porque o Portugal imperial estava acabado e voltou a ser um pequeno país no fim da Europa, entalado entre Espanha e o oceano”, fê-lo sentir-se enquadrado.

A grande diferença entre as cidades, na opinião de Faustin, é que Lisboa tem uma postura subserviente em relação a Paris, olha para a capital francesa “de baixo para cima”.

“Sinto que eu e Lisboa estamos conectados. Olhamos para Paris da mesma maneira, estamos ao mesmo nível (…). Aqui as pessoas sabem o que é viver com pouco, sentem-se zangadas”, disse o coreógrafo.

Nos seus trabalhos, o criador explora a memória, o esquecimento e a supressão da lembrança, focando o legado de décadas de guerra, terror, medo e o colapso da economia na República Democrática do Congo, por isso afirma: “a minha primeira herança são as ruínas”.

Em breve estará de regresso a Kisangani, no nordeste da República Democrática do Congo, onde vive e trabalha.

“Agora vou novamente a mudar-me, de volta a casa, o que quer que isso signifique, para as minhas ruínas”.

O coreógrafo e bailarino foi o protagonista da bienal Artista na Cidade de 2016, tendo-lhe sido atribuída a Medalha de Mérito Cultural pela Câmara Municipal de Lisboa. No ano passado, no arranque do Festival Alkantara, fez a estreia nacional de "História(s) do Teatro II", em Lisboa, uma peça que revisitava a nação congolesa nos anos 1970 e a criação do Ballet National du Zaire, com três dos seus membros originais.