Músico e pintor, Manuel João Vieira fez parte de bandas como Ena Pá 2000, Irmãos Catita e Corações de Atum, e apresenta, na sexta-feira, um álbum duplo inspirado no universo fadista, designadamente uma das suas vertentes menos cultivadas, atualmente, o fado humorístico, que teve cultores como Joaquim Cordeiro, Francisco Santos ou Neca Rafael.
O interesse pelo fado, "começou há muito", disse o músico Manuel João Vieira, à agência Lusa, recordando as atuações dos Irmãos Catita no Cinearte, em Lisboa, que incluíam alguns fados.
"Alguns fados cantava com uma certa ironia, pois o tempo dá essa distância, pois estavam ligados a uma moral datada, de certa época; outros inscrevem-se claramente nos chamados fados humorísticos", disse.
"O código narrativo desses fados humorísticos dá-nos uma atmosfera diferente e uma ironia, que descomprime", acrescentou.
Neste álbum duplo, editado pelo Museu do Fado, Manuel João Vieira recria fados do repertório de Joaquim Cordeiro (1903-1982), uma das vedetas do fado humorístico com cariz jocoso, a partir da década de 1950.
É o caso de "Confissão" (Luís da Silva Gouveia e Miguel Ramos), "Belchior foi ao Japão" (Armando Coutinho Dias, Marcha do Manuel Maria) e "Bom Conselho (Juras)" (Manuel Rodrigues de Sá Esteves e Filipe Pinto), fado também cantado por Esmeralda Amoedo, a primeira vencedora da Grande Noite do Fado de Lisboa, em 1953.
De Neca Rafael (1906-1980), Vieira gravou "Casa Importante". Do alinhamento escolhido faz ainda parte "Ser Fascista" (Artur Gonçalves e João Nobre), a partir do fado "Ser Fadista", com uma letra de César de Oliveira e Rogério Bracinha, amplamente gravado, entre outras, por Hermínia Silva, Maria Amélia Proença, Maria da Nazaré e Julieta Estrela.
Além dos fados de repertórios de outros fadistas, como Alfredo Marceneiro, de quem gravou "Amor é Água que Corre" (Augusto César de Sousa/Marcha do Marceneiro, de Alfredo Duarte), Manuel João gravou temas originais, como "Fado Barnabé", uma letra de sua autoria para uma melodia de Frederico de Brito (1894-1977).
Manuel João assina outros temas, nomeadamente a letra e música de "Mar Profundo", "Nunca Digas Não", "A Travessa da Espera", "Fado 14" e de "Dentro para Fora".
Outro letrista deste álbum é Fernando Brito, autor de "Fado 22", "Ser Milionário", "Fado Tejo", todos com música de Manuel João, e ainda "Fado Boi", para a composição "Cavalo Russo", de Frederico Valério (1913-1982).
Manuel João referiu que este fado humorístico e jocoso "é muito importante na cultura popular portuguesa", e tem reflexos das cantigas medievais de escárnio e mal dizer.
O músico e artista visual recordou ainda o fado como veículo das aspirações anarquistas e operárias, do final do século XIX e princípios do século XX.
Neste duplo CD, Manuel João inclui, entre outros, o fado anarquista "Bravos Heroes do Progresso", na melodia do Fado Vitória, de Joaquim de Campos (1911-1981), autor que o inspirou também na escolha dos 'fados-tango' que gravou, como "Mulheres há Muitas" (Matos Sequeira e António Lopes).
O músico tinha já abordado este universo fadista em 2017, na exposição "Phonógrapho", que esteve patente no Museu do Fado.
"Eu estava no museu a preparar a exposição e ia ouvindo estes e outros fados. Alguns o meu pai [o pintor João Rodrigues Vieira] também os entoava. E foi aí que este projeto começou", disse à Lusa Manuel João Vieira.
Neste duplo CD, tal como na exposição, Manuel João revisita a mitologia fadista, sublimando as personagens dos fados de Joaquim Cordeiro, Frutuoso França, de quem canta "Anabela" (Francisco Manuel dos Santos/Frutuoso França) ou Joaquim Pimentel.
Manuel João Vieira gravou ainda "Procuro e não te Encontro" (António José Lampreia e Nóbrega e Sousa), uma criação de Tony de Matos, "Fado das Trincheiras" (Féix Bermudes, João Bastos e António Melo), que Fernando Farinha gravou, "A Freira" (Armando Neves e Casimiro Ramos), gravado, entre outros, por Cidália Moreira, e "Fado Mortalhas" (Linhares Barbosa e Armando Machado), gravado anteriormente por Rodrigo e Max.
Vieira considera "fundamental" a recuperação deste repertório humorístico e uma atitude "mais irónica" para com alguns fados "datados e de uma moral que o tempo permite questionar".
Para constituir o alinhamento dos dois CD, num total de 32 fados, Manuel João Vieira citou como fontes o músico Vital d'Assunção, que o acompanha à viola, e a Sociedade Portuguesa de Autores.
Além de Vital d'Assunção, os outros acompanhadores são, na guitarra portuguesa Arménio Melo e Sandro Costa, em quatro temas, Múcio Sá, no baixo acústico, no tema "Estação das Chuvas", adaptação portuguesa de Manuel João, da canção "La Saison des Pluies", de Serge Gainsbourg.
A capa do duplo CD, "que é para toda a família", reproduz a tela "Fado Vadio", de João Rodrigues Vieira, uma "reinvenção" do óleo "O Fado" de José Malhoa (1855-1933).
O novo álbum surge cerca de uma semana depois de Manuel João Vieira ter inaugurado a exposição "KWØ" ou "KWZero", na Galeria Valbom, em Lisboa, com os artistas plásticos Pedro Portugal e Pedro Proença (que no início dos anos de 1980 protagonizaram a Homeostética, com Xana, Fernando Brito e Ivo Pereira da Silva).
A mostra é um tributo aos artistas do grupo KWY dos anos de 1950/1960 - João Vieira, Lourdes Castro, René Bertholo, Costa Pinheiro, José Escada, Gonçalo Duarte, Christo e Jan Voss -, e à “Alternativa Zero”, que Ernesto de Sousa levou à Galeria Nacional de Arte Moderna, em Lisboa, em fevereiro e março de 1977, que mostrou os artistas que então definiam as muitas vias da arte contemporânea em Portugal, como Helena Almeida, Ângelo de Sousa, Alberto Carneiro, Ana Hatherly, Ana Vieira, António Sena, E. M. de Melo e Castro, Fernando Calhau, Graça Pereira Coutinho, Julião Sarmento, entre outros, em mostras como as "Tendências Polémicas da Arte Portuguesa Contemporânea", os "Pioneiros do Modernismo" e a "A Vanguarda e os Meios de Comunicação".
Em "KWZero" são apresentadas obras inéditas de Manuel João Vieira, Pedro Portugal e Pedro Proença, "motores criativos de quiasmas artísticos da cultura", como Ena Pá 2000, Ases da Paleta, Etno-Estética, Candidato Vieira, Orgasmo Carlos, Explicadismo, Pandemos, Zuturismo e Arthomem, como a galeria recorda.
"A longa parceria artística" de Vieira, Portugal e Proença "revela agora a sua variante mais xamânica, pós-neo-platónica e demiúrgica, onde o Daimon da arte é revelado como um oráculo ao espectador, atingindo-o no coração do mal-estar, onde é mais frágil, onde está disposto a rir, chorar ou extasiar-se. Um apelo à dissolução conceptual, estrutural e não-verbal do que é produzido como arte contemporânea", escreve a Galeria Valbom.
Em "KWØ", são apresentados centenas de objetos, esculturas, instalações, desenhos, fotografias, pinturas, vídeos desta "eucaristia artística", que poderá ser vista na Galeria Valbom, em Lisboa, até 12 de dezembro.
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