Ninguém vive o mesmo Mexefest. Sendo um festival que concede aos seus participantes o tortuoso dom do livre arbítrio, cada roteiro é único e intransmissível. Sendo necessário passear a um ritmo alucinante pela baixa, às vezes sem fazê-lo com a calma devida, achámos que faria jus à sua natureza fragmentada fazer um relato dividido em 10 momentos. 

A maldita dispersão

Já é um clássico do Mexefest, mas o facto de haver concertos espalhados por vários pontos na zona circundante aos Restauradores, muitas vezes em horas conflituosas, continua a ser uma faca de dois gumes. Se por um lado é um conceito interessante de festival que permite o aproveitamento de espaços para a realização de concertos (como o Palácio da Foz, que doutra forma nunca teria, por exemplo, uma banda de disco house a tocar), por outro é exasperante, pois torna-se fisicamente impossível chegar a horas a um concerto sem que se perca o final da prestação à qual se estava a assistir. Devido ao um misto de critérios editoriais com opções de gosto, foi impossível assistir a concertos louvados como os de Kindness, Palma Violets, Capicua, Jay-Jay Johnsson ou Perfume Genius.

 Thug Life na casa de Deus

Como foi referido no ponto anterior, o Mexefest proporciona pares verdadeiramente inusitados entre artistas e instalações e talvez nenhum tenha sido tão contrastante nesta edição como os JJ na Igreja de São Nicolau. Enfiar um projecto electrónico a resvalar para o hip-hop onde a voz frequentemente modulada de Elin Kastlande canta histórias de drogas, angústia e sordidez sexual numa igreja com centenas de anos é uma ideia um tanto ou quanto transgressiva, mas, como Deus escreve por linhas tortas, a reverberação foi um complemento perfeito à sua sonoridade downtempo. Para além da pervertida sensibilidade melódica de “Ecstasy”, “Dean & Me” ou “Dynasti”, aquilo que ficou nas memórias dos mais que muitos presentes foram os trejeitos gangsta de Joakim Benon, em transe com a música, que tiveram tanto de honesto como de hilariante.

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Militância eclética

Foi o projecto TUnE-yArDs, saído da mente delirante mas socio e politicamente consciente de Merrill Garbus, que teve as honras de estrear o palco do Coliseu dos Recreios este ano. Com Stop That Man a dar o tiro de partida, foi uma hora de dança proporcionada pelo ritmo frenético da percussão (muitas vezes em “loop”), apenas parando para respirar no momento mais introspectivo de “Powa”. Apesar do ritmo palavroso e de língua afiada de Garbus, um concerto dos TUnE-yArDs não soa a um sermão mas sim a uma celebração desafiadora onde a worldbeat foi rainha. Com o material a pender sobretudo entre o mais recente Nikki Nack e o anterior Whokill, os festivaleiros do Mexefest tiveram a possibilidade de ouvir “Gangsta”, “Water Fountain” e “Bizness” (entre outras) e de presenciar o melhor trabalho rítmico que a Baixa lisboeta já viu desde a última manif.

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Pharaohe says “Get the Fuck Up”

Estavam os tambores a cessar no Coliseu quando o DJ de Pharoahe Monch começou a puxar pelos presentes no Ginásio do Ateneu para a chegada do lendário rapper. Aquilo que podia ter sido uma verdadeira comunhão de hip-hop (o ambiente estava digno para a ocasião) acabou por ser uma oportunidade falhada, já que as características do ginásio assassinaram o som que brotava do PA. O MC de Queens mostrou que a idade e o legado não são um posto e que continua a ser uma besta por detrás do microfone, tanto liricamente como na cadência do “flow” (apesar de às vezes ser imperceptível), mas, mais importante ainda, foi a paixão e humildade com que se entregou. Exemplo disso foi quando se enganou no início de uma música, parou, pediu desculpa e antes de recomeçar contou uma história de quando numa ida edição do Rock the Bells se deixou ir abaixo e precisou de um raspanete do Busta Rhymes para continuar. Já quanto aos temas, foi um misto entre material recente e antigo, com destaque para as homenagens que fez aos idos comparsas Big L, Big Pun, Guru, Notorious B.I.G, 2Pac e Old Dirty Bastard e para o seu maior hit, “Simon Says”, que tratou de partir a louça toda.

Santa Paciência

Esta é uma triste parábola de como as condições de visualização de um concerto podem afectar irremediavelmente a experiência do mesmo. Chegar com atraso (uma pessoa não é de ferro, precisa de comer) foi o primeiro problema e levou ao segundo, que foi ter de assistir ao concerto dos St. Vincent a partir de um camarote no segundo andar do Coliseu. Não só o som era manifestamente mau àquela distância como foi o local onde incidiram todas as luzes do palco, provocando frequente casos de cegueira temporária. De resto, mais do que um concerto, foi um espectáculo ver Annie Clark a encher o palco, seja com os dotes de guitarra ou a teatralidade das suas acções, apesar do comboio por vezes perder fulgor. Ficam na memória a ode sentida de amor filial em “I Prefer Your Love” (que acabou com Clark prostrada no chão), o combo portentoso de “Surgeon” e “Cheerleader”, a quasi-rockabilly “Birth in Reverse” e o saudoso regresso ao passado já no encore em “Your Lips Are Red”.

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Candura negra

“Have you looked up yet? There’s a crazy sun in the ceiling.” Foi desta forma que Sharon Van

Etten se apresentou ao público no Coliseu, deixando bem pautada a forma como se relacionaria com os festivaleiros: soturna nas canções mas comunicativa nos interregnos. Foi de magia que se tratou mais de uma hora de concerto, onde a folk tristonha embalou os corações e fez tremer os olhos. Com “Afraid of Nothing” seguiu-se o balanço “Beach Houseiano” de “Taking Chances”, sendo claro que esta seria uma performance quase exclusivamente dedicada ao mais recente Are We There. Houve, contudo, excepções, como a melancolia tingida a country de “Save Yourself” ou “I Don't Want To Let You Down”, faixa que não chegou a figurar no álbum e que conta com um solo fulminante de guitarra que surpreendeu todos os presentes. O melhor, esse ficou para o fim, com o ritmo marcial de “Your Love Is Killling Me” a marchar para o fim de uma relação condenada à agonia, mas “Everytime The Sun Comes Up” actou com bálsamo com o seu humor agridoce para finalizar um dos concertos do Mexefest.

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Vendaval nebuloso

Era ver a maralha em pânico a dirigir-se para o Ginásio no Ateneu para ver Cloud Nothings, que vieram cá pela segunda vez este ano depois da passagem pelo Primavera Sound, no Porto. O fluxo foi tal que o espaço rapidamente ficou interditado, com muita gente lá fora a praguejar a lentidão e/ou má sorte, apesar do Ateneu nunca parecer estar cheio. Lá dentro, a atmosfera insalubre e o som revelava-se perfeita para o ver o trio norte-americano a violentar os seus instrumentos. O pavilhão, que atraiçoou Monch, elevou os Cloud Nothings para outro patamar, onde o feedback apenas auxiliou à produção de mais barulho e, consequentemente, mais energia para ser despendida num mosh que com certeza contribuiu para a aceleração da morte térmica do universo. Ora apresentando Here and Nowhere Else, ora regressando a Attack On Memory, os Cloud Nothings assinaram um dos melhores concertos do Mexefest, não só pela volatilidade com que se entregaram, como também pelo facto da angústia transversal à sua música, mais do que juvenil, ser intrínseca à experiência humana, e por isso, imensamente identificável. Prova disso mesmo foi o final absolutamente catártico em “Wasted Days”, cuja explosão podia ter selado o Mexefest ali mesmo.

Da temperança

Apesar de não estar tão cheio como na noite anterior, o Coliseu voltou a ficar bem composto para aquela que seria a derradeira actuação do festival, pelo menos no que concerne a cabeças de cartaz. Os Wild Beasts, também eles detentores de um álbum novo que figurará em bastantes listas neste fim de ano, voltaram a Portugal depois da passagem pelo Rock in Rio deste ano e foram provavelmente a banda com o melhor som do festival. Aos sintetizadores sumptuosos juntou-se um baixo quente e retumbante e uma bateria igualmente impositiva para servirem de pano de fundo à troca entre os dois vocalistas Hayden Thorpe e Tom Fleming. Contudo, apesar da postura e classe definitivamente britânicas e da beleza e inteligência de arranjos em faixas como “Bed of Nails”, “A Simple Beautiful Truth” ou “Wanderlust”, ficou sempre uma sensação de insuficiência, de um clímax que nunca chegou a ser alcançado. Pondo de outra forma, foi como ficar de nariz para o tecto à espera de um espirro que nunca chega a morrer nas mãos (ou antebraço, desde a Gripe das Aves).

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O contingente luso

O Mexefest também foi um espaço de mostra para muitos talentos emergentes nacionais, como aliás tem sido o apanágio deste festival desde a sua génese. Francis Dale, projecto de Diogo Ribeiro, gozou provavelmente do espaço mais bonito para actuar no festival, a Sala de Espelhos do Palácio da Foz. Sem o acompanhamento electrónico de estúdio (algo que pareceu acontecer devido a dificuldades técnicas), a actuação pecou pelo resvalar para os lugares comuns do blues, mas Diogo Ribeiro compensou com muita técnica e feeling nas 6 cordas. Já os Savanna viram o seu trabalho árduo ser recompensado com uma presença no Cinema São Jorge. A banda lisboeta, prestes a lançar o seu primeiro longa duração, atacou o seu curto set com ganas e demonstrou ser capaz tanto de entrar num groove valente como espraiar-se em paisagens psicadélicas pintadas pelos sintetizadores. No entanto, o Mexefest não se fez apenas de sangue novo, já que os Clã deram uma lição de vitalidade e categoria. Com um luxuoso leque de convidados, entre os quais Sérgio Godinho (que auxiliou Manuela Azevedo em “Curto Circuito” e “Artesanato”) e Samuel Úria (que apresentou a sua “Teimoso” e fez dueto em “Way Down In The Hole” de Tom Waits), o concerto do conjunto portuense só pecou pelo facto da sala a ficar vazia à medida que a hora se aproximava para St. Vincent.

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Os finais felizes

Tanto dia 28 como dia 29 acabaram com chave de ouro. Após a grandiosidade de St. Vincent, nada podia calhar melhor do que uma boa dose dança intensa e suada proporcionada por duas das joias da Príncipe Discos, DJ Nigga Fox e DJ Marfox. Se o primeiro apresenta uma sonoridade de batida mais ligada ao kuduro, o segundo já alarga o seu espectro para a abrasividade do techno, mas ambos contribuíram para o festim de partir chão e provaram como em Portugal se produz música electrónica que foge completamente aos clichés. Já no segundo dia, os poucos que saíram mais cedo de Wild Beasts puderam ir gingar para o Palácio da Foz dançar com os Thunder & Co., que contaram com a participação de Rui Maia. Bebendo da mesma fonte que alimentou os Daft Punk para o Random Access Memories, Rodrigo Gomes e Sebastião Teixeira fizeram do palácio discoteca de disco funk e deram o salvo final para mais um Vodafone Mexefest.

Texto de António Moura dos Santos

Fotografias de Rita Sousa Vieira