"As canções parecem saber o que são e sabem que eu as consigo cantar, vocalmente e liricamente. Elas escrevem-se a si próprias e contam comigo para cantá-las", assinalou o autor de "The Times They Are a-Changin'" ou "Like a Rolling Stone" ao jornal New York Times numa rara entrevista, no ano passado.
Através das suas canções, algumas tornadas hinos, Bob Dylan tem dado voz a mensagens de crítica ideológica, pacifismo e inconformismo desde os anos 1960, contribuindo para formar e expressar a consciência de gerações.
No entanto, assegura que "nunca quis ser um profeta ou um salvador. Elvis talvez", realça. "Via-me bem a tornar-me como ele. Mas profeta?, não", afirmou noutra entrevista - no programa televisivo norte-americano "60 Minutes", há 20 anos -, na qual admitiu que o culto de que foi sendo alvo deu-lhe muitas vezes a sensação de ser um "impostor".
"Era como entrar numa história de Edgar Allan Poe. Não se é pura e simplesmente a pessoa que toda a gente pensa que é", disse. "O que fazia... era canções... não era sermões. Se olharmos para as canções creio que nelas não encontramos nada que mostre que sou o porta-voz de seja o que for ou de qualquer causa", acentuou. "Os que pensam o contrário não devem ter percebido as canções".
Da América para o mundo, da música para a literatura e outras artes
Robert Allen Zimmerman nasceu em Dulutth, Minnesota, EUA, no dia 24 de maio de 1941. Aprendeu sozinho a tocar harmónica, guitarra e piano e adotou o nome de Bob Dylan numa homenagem ao poeta galês Dylan Thomas.
Cresceu numa família judaica de classe média, na cidade de Hibbing, e na adolescência tocou em várias bandas. Com o tempo, o seu interesse na música aumentou, especialmente pela folk e blues norte-americanos.
Um dos seus ídolos de Dylan era o cantor folk Woody Guthrie e também foi muito influenciado pelos autores da chamada 'Geração Beat', bem como pelos poetas modernistas.
Em 1961, Dylan mudou-se para Nova Iorque e começou a cantar em clubes e cafés em Greenwich Village. Depois de um encontro com o produtor John Hammond, assinou um contrato para o álbum de estreia homónimo, editado em 1962.
Quando conseguiu os primeiros êxitos, com "Blowin’ in the Wind" ou "The Times They Are a Changin", em 1962/1963, o presidente dos Estados Unidos era John F. Kennedy e John Wayne e Doris Day brilhavam no grande ecrã como os atores da moda.
Nos anos seguintes, gravou vários álbuns que tiveram grande impacto na música popular: "Bringing It All Back Home" e "Highway 61 Revisited", em 1965, "Blonde On Blonde", em 1966, e "Blood On The Tracks", em 1975. Cntinuou a produzir alguns dos que são considerados os seus melhores discos: "Oh Mercy" (1989), "Time Out of Mind" (1997) e "Modern Times" (2006).
As digressões em 1965 e 1966 atraíram enorme atenção e durante um largo período foi acompanhado pelo realizador D.A. Pennebaker, que documentou a ação em torno do palco naquele que viria a ser o filme "Don't Look Back" (1967).
Desde o final da década de 1980, tem efetuado várias digressões, no âmbito do "Never-Ending Tour". Além da música, pinta e escreve argumentos.
Alguma da sua obra literária também está publicada em Portugal, a par de composições e das edições discográficas. Dois livros com letras de canções, que abrangem os álbuns publicados entre 1962 e 2001, foram editados pela Relógio d'Água ("Canções I e II"), enquanto o primeiro - e único, ainda - volume da autobiografia de Bob Dylan, "Crónicas", saiu pela Ulisseia.
Em 2007, a Quasi Edições publicou o livro de ficção "Tarântula", prosa-poema experimental de 1966, altura em que Bob Dylan editou o álbum "Blonde on Blonde" e teve um acidente de moto, que o obrigou a um período de recuperação.
Em 1993, a editora Fora de Texto, de Coimbra, publicou "No vento que passa", com poemas de Bob Dylan, com tradução de Graça Nazaré.
"Rough and Rowdy Ways", editado no ano passado, é o disco mais recente. A revista Rolling Stone resumiu-o como "um clássico absoluto" centrado no "complexo território" habitual do artista. O alinhamento inclui humor, blues, reflexões sobre a passagem do tempo ou ardor patriótico, enumerou o jornal New York Times.
Este é o 39.º álbum da discografia do músico e o primeiro com temas inéditos em oito anos, desde que lançou "Tempest", em 2012. Pelo meio, lançou outros registos discográficos de versões, como "Shadows in the Night", de 2016, o triplo álbum "Triplicate", do ano seguinte.
Entre "novas expressões poéticas" e a surpresa do Prémio Nobel
Em 2016, quanto tinha 75 anos, Dylan foi o primeiro músico a ser distinguido com o Prémio Nobel da Literatura por "ter criado novas expressões poéticas no âmbito da música norte-americana", de acordo com a secretária-geral da Academia Sueca, Sara Danius. O seu nome, como o do canadiano Leonard Cohen, figuravam com frequência entre os possíveis candidatos.
Como Thomas Mann, Albert Camus, Samuel Beckett, Gabriel García Márquez e Doris Lessing, o cantor entrou no panteão dos homens e mulheres das letras premiados pela Academia sueca desde 1901.
Enquanto os críticos mais puristas esperavam que o prémio fosse para os seus compatriotas Philip Roth ou Don DeLillo, Danius sempre defendeu a escolha da Academia.
A secretária-geral explicou que Dylan mereceu o prémio por ser "um grande poeta na grande tradição poética inglesa". "Ele encarna essa tradição", disse a responsável, lembrando que há décadas que o cantor, poeta e compositor se reinventa, criando novas identidades.
Desafiada a escolher uma canção emblemática do agora Nobel da Literatura, Darius disse que o álbum "Blonde on Blonde", de 1966, "é um exemplo extraordinário da sua forma brilhante de rimar e do seu pensamento pictórico".
A representante da Academia Sueca lembrou ainda, quando questionada sobre a especificidade da poesia do músico, que foi escrita para ser cantada, que também Homero e Safo, há mais de 2000 anos, escreveram poesia que devia ouvir-se. "E ainda hoje lemos Homero e Safo", frisou.
A atitude de Dylan desde o anúncio do prémio, especialmente a sua insistência em não falar nada a respeito do assunto durante um concerto em Las Vegas no dia em que a Academia revelou o seu nome como vencedor do Nobel de Literatura, confundiu algumas pessoas, mas está em sintonia com o seu caráter discreto.
Após o anúncio, o cantor ficou em silêncio, o que aumentou a polémica. Um dos notáveis da Academia, Per Wästberg, chegou a criticar a sua "arrogância". Já para Martin Nyström, crítico musical do jornal "Dagens Nyheter", os ausentes nem sempre se equivocam. "O músico tem uma agenda inacreditável. É um artista, escreve livros, textos, música e está em digressão com a sua banda sem parar", comentou o jornalista.
Durante o banquete de entrega dos prémios, foi a embaixadora dos Estados Unidos na Suécia que leu seu discurso de agradecimento, no qual afirmava que não podia acreditar que seu nome figurava ao lado de autores como Rudyard Kipling (1907) e Ernest Hemingway (1954).
"Esses gigantes da literatura cujas obras são ensinadas na sala de aula, abrigadas em bibliotecas em todo o mundo e das quais se fala em tons reverentes, sempre me impressionaram profundamente", disse então.
As visitas a Portugal: dos concertos às férias que inspiraram um clássico
Bob Dylan deu oito concertos em Portugal. A estreia foi em julho de 1993, no Coliseu do Porto e no Pavilhão de Cascais, com Sérgio Godinho e a norte-americana Laurie Anderson a assegurarem a primeira parte de ambos.
"No Porto, Bob Dylan chegou a passear sozinho pelas ruas da cidade, acompanhado apenas por um segurança". No concerto em Cascais, "apresentou versões praticamente irreconhecíveis das suas melhores canções", escrevia a agência Lusa na altura.
O último concerto decorreu em 2019, no Coliseu do Porto. "Apresentou-se igual a si mesmo: apesar do abraço caloroso do público, o músico entrou e saiu do palco sem dirigir uma única palavra ao público, como é hábito há décadas. O foco esteve sempre nas suas palavras, na poesia cantada e nas melodias", escreveu o SAPO Mag na reportagem sobre o espetáculo.
Antes da estreia nos palcos nacionais, o músico tinha estado décadas antes em Portugal, em 1965, com Sara Lownds - com quem casaria nesse ano -, imediatamente após o rompimento com Joan Baez.
De acordo com a biografia "Behind the Shades", de Clinton Heylin, quando regressou a Londres, o cantor teve de ser hospitalizado por causa de uma intoxicação alimentar. Durante a recuperação, Bob Dylan escreveu 'Like a Rolling Stone", uma das suas canções mais conhecidas.
Em 1976, incluiu no álbum "Desire" a canção "Sara", no qual tem uma referência a "beber rum num bar em Portugal".
O cantor é um fanático pelo golfe e sempre que vem à Europa traz na sua mala os guias dos campos existentes em Portugal, uma prenda que lhe foi oferecida pelo marido da cantora Celine Dion.
Quando Dylan gostava de passar algum tempo em "Mozambique"
Bob Dylan lançou "Mozambique" em 1976, uma canção que está longe de gerar consenso.
Bob Dylan compôs o tema com Jacques Levy em 1975, o ano da proclamação da independência de Moçambique, e, quando foi lançado no álbum "Desire" e também como single, em 1976, gerou discussão por ser uma letra de um cantor de intervenção que trata o país com alguma ligeireza, ao fim de uma década de luta armada contra o colonialismo português.
Décadas depois, Aurélio Le Bon, um dos mais conhecidos empresários de espetáculos de Moçambique, considera que o tema deve ser um motivo de orgulho para os moçambicanos, mas o escritor Mia Couto acha justamente o contrário.
"Não é uma grande letra, tem uma relação de quem está apenas de passagem turística por Moçambique e não me parece que deva haver grande orgulho nisso", assinalou à Lusa Mia Couto.
O romancista e poeta, vencedor do Prémio Camões em 2013, recorda-se de a canção ter circulado em Moçambique em 1976, mas de forma discreta. "Tem uma harmonia bonita apesar da letra superficial".
Há quatro décadas, Bob Dylan escreveu que "gosta de passar algum tempo em Moçambique", embora seja duvidoso que alguma vez tenha visitado um país onde "o céu ensolarado é azul-água" e todos os casais dançam encostados, há mulheres bonitas, muito tempo para o romance e, na única referência que pode ser claramente interpretada como política, habitado por "pessoas adoráveis que vivem livres".
Quando foi lançado como single, "Mozambique" atingiu o 54.º lugar do top Billboard Hot 100, dando popularidade a um país que acabava de conquistar a sua independência, mas que, logo a seguir, foi devastado por uma guerra civil, que durou 16 anos e custou as vidas de cerca de um milhão de pessoas.
Ao contrário de Mia Couto, Aurélio Le Bon defende que o Nobel da Literatura atribuído a Bob Dylan deve, "sem dúvida, ser motivo de orgulho" para Moçambique. "Quando poucos no mundo sabiam que há uma terra chamada Moçambique, já Dylan falava dos encantos deste país", disse à Lusa o promotor de espetáculos, que em 1989 trouxe a Maputo Eric Clapton para um memorável concerto na capital moçambicana.
Numa altura em que Moçambique tem sido notícia no mundo por escândalos financeiros e insegurança, assinalou o empresário, ter o nome do Nobel da Literatura associado ao país ajuda a elevar a autoestima. "Moçambique nunca foi só país de aspetos negativos, mas a ligação a uma estrela como Bob Dylan reforça essa imagem de um país hospitaleiro e aprazível", considerou Aurélio Le Bon.
O empresário lembra que quando "Mozambique" saiu em 1976, os amantes de música, principalmente nas principais cidades moçambicanas, deram conta do interesse de Bob Dylan pelo país e isso ajudou a galvanizar a cena musical local ligada ao género do artista norte-americano.
"O que gostaria mesmo que acontecesse era que o Dylan viesse tocar cá, para concretizar de forma física essa ligação afetiva, porque nunca veio cá", enfatizou Aurélio Le Bon, numa alusão à ideia generalizada de que o autor nunca esteve no país, embora tenha escrito "Mozambique" motivado por razões igualmente incertas.
Acordo histórico: Universal Music comprou todo o catálogo musical
Em dezembro de 2020, a Universal Music comprou o catálogo completo de canções de Bob Dylan, num acordo histórico que contempla direitos de autor de 600 temas, abrangendo um período de 60 anos. Este acordo poderá ser a maior aquisição de todos os direitos de publicação em um único ato de sempre, segundo o New York Times.
A Universal, que é a maior editora mundial de música, disse que este acordo de edição musical é o "mais significativo deste século", mas recusou-se a divulgar os valores envolvidos.
Segundo o Financial Times, o negócio foi fechado por "nove dígitos", estimando-se que a empresa tenha desembolsado centenas de milhões de dólares.
Ao contrário de muitos outros artistas, Bob Dylan era proprietário dos direitos de publicação da sua música, que era administrada fora dos EUA pela Sony/ATV Publishing.
Um catálogo icónico destes gera receitas durante décadas, enquanto as músicas continuarem a ser transmitidas, tocadas na rádio, ou utilizadas em filmes e anúncios publicitários.
O valor de ser proprietário de música sofreu um impulso nos últimos anos, graças ao streaming, que veio reanimar a indústria.
Para Jody Gerson, presidente executiva da Universal Music Publishing Group (UMPG), "representar o trabalho de um dos maiores compositores de todos os tempos - cuja importância cultural não pode ser exagerada - é simultaneamente um privilégio e uma responsabilidade".
O presidente executivo da Universal Music Group, Lucian Grainge, afirmou, por sua vez, que "não é segredo que a arte de escrever canções é a chave fundamental de toda a grande música, nem é segredo que Bob é um dos maiores praticantes dessa arte".
"Brilhantes e comoventes, inspiradoras e belas, perspicazes e provocadoras, as suas canções são intemporais - quer tenham sido escritas há mais de meio século ou ontem", acrescentou, sublinhando não ter "dúvidas de que daqui a décadas, mesmo séculos, as palavras e a música de Bob Dylan continuarão a ser cantadas e tocadas - e acarinhadas - em todo o lado".
Bob Dylan já vendeu mais de 125 milhões de discos em todo o mundo e acumulou um trabalho que inclui algumas das maiores e mais populares canções "que o mundo alguma vez conheceu", afirma a UMPG.
O cantor conta com inúmeros admiradores do universo musical. Bruce Springesteen, R.E.M, U2, The Clash, Sheryl Crow, Sérgio Godinho e muitos outros confessam que tiveram influência do músico.
Bob Dylan - "The Times They Are a-Changin'" (1965):
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