Crescer custa, mas talvez custe mais a um rapaz norte-americano acabado de chegar a uma base militar em Itália com as suas mães, sem mais caras familiares por perto, situação que amplia o desamparo emocional de um quotidiano solitário aos 14 anos. Mas Fraser, o protagonista de "We Are Who We Are", não vai estar sozinho ao longo da série de oito episódios que marca a estreia na televisão de Luca Guadagnino, realizador italiano que já experimentou vários géneros (do documentário ao terror, na nova versão de "Suspiria", do conterrâneo Dario Argento), embora tenha sido especialmente aplaudido pelo relato coming of age de "Chama-me Pelo Teu Nome".
Nesse drama baseado no livro homónimo de André Aciman, vencedor do Óscar de Melhor Argumento Adaptado em 2018 e nomeado para mais três estatuetas douradas (incluindo a de Melhor Filme), o cineasta já se tinha interessado pelo processo de descoberta identitária e sexual de um adolescente, que acabava por se envolver com um homem mais velho. Em "We Are Who We Are", da qual Guadagnino é criador, realizador, argumentista e produtor executivo, a dinâmica parte da cumplicidade que vai nascendo entre a personagem principal masculina e Caitlin, uma rapariga aparentemente confiante mas que se debate com questões de género.
Jack Dylan Grazer, que participou nos filmes da saga "It" ou "Shazam!", e Jordan Kristine Seamon, com um percurso mais discreto que alia representação e música, encarnam os protagonistas de uma série com um elenco heterogéneo. Além de jovens talentos, como a dupla principal ou Francesca Scorsese (filha de Martin Scorsese), destacam-se as veteranas Chloë Sevigny e Alice Braga (as mães de Fraser) ou o rapper Kid Cudi (pai de Caitlin).
"Adorei 'Chama-me Pelo Teu Nome', achei que o retrato do amor e da adolescência era muito bem feito, muito bonito e puro. E esses aspetos mantiveram-se em 'We Are Who We Are', na forma como acompanhamos as vidas das personagens e as suas verdades sem filtro", conta Jack Dylan Grazer numa conferência de imprensa virtual na qual o SAPO Mag participou. "Sim, disse sem filtro!", sorri, entusiasmado.
"O Luca [Guadagnino] deu-nos muita liberdade, tivemos rédea solta e pudemos explorar as personagens de acordo com as nossas ideias, sem nos limitarmos ao argumento", recorda o ator californiano de 17 anos.
"Houve muitas cenas orquestradas mas também houve sempre espaço para o improviso, para nos expressarmos e contribuirmos com pequenos detalhes em muitas cenas", assinala Jordan Kristine Seamon no mesmo encontro com os jornalistas.
Viagem a Itália
"Passámos muito tempo juntos fora das filmagens e isso ajudou a que a química das personagens fosse verosímil. Quando a Caitlin está com o grupo de amigos na praia, no primeiro episódio, o sentimento de diversão é autêntico porque estávamos genuinamente a divertir-nos como um grupo de amigos. Termos estado um mês juntos antes das filmagens foi decisivo para isso", explica a atriz norte-americana, também de 17 anos.
Para Grazer, a temporada italiana foi igualmente determinante. "Passei algum tempo em Itália antes das filmagens, sozinho, para tentar perceber o Fraser. Li o argumento como se fosse pelos olhos dele, andei pelas ruas como ele, bebi um café como se fosse ele. Queria muito agarrar esta personagem através de uma experiência imersiva em vez de me desligar dela de forma intermitente. Foi um grande salto para mim e algo que já queria fazer", assinala.
"Há muita coisa a passar-se na cabeça dele. Está num turbilhão emocional que se manifesta a nível interno e externo. Está desesperado por não deixar escapar a sua juventude enquanto tenta descobrir quem é", diz sobre o protagonista, que passa o primeiro episódio da série a deambular sozinho pela base militar de Veneto, mas acaba por ir conhecendo (ou apresentando ao espectador) as outras personagens. E logo com alguma tensão familiar pelo meio.
"Ele sente-se só, sente que lhe falta alguma coisa, mas não sabe o quê. E por isso, culpa a mãe, até porque não tem uma figura paternal. Culpa a mãe por essa herança e pelas suas inseguranças. (...) E foi ela que o tirou da sua casa, em Nova Iorque, e o fez atravessar o oceano para ir viver numa zona isolada em Itália onde ele não tem nada", aponta Grazer.
"Ao princípio não conseguir compreender o Fraser, mas achei que esse processo seria um grande desafio. Mas já conheci pessoas como o Fraser e julgo que os argumentistas conseguiram construir esta e as outras personagens muito bem, de forma muito crua e credível", acrescenta.
Uma crise inspiradora
"Agora sinto-me próxima da Caitlin, mas no princípio achei que éramos muito diferentes", refere Jordan Kristine Seamon. "A Caitlin debate-se com a sua identidade de género, algo pelo qual nunca passei mas sobre o qual aprendi e refleti à medida que a fui interpretando. Mas foi muito difícil em alguns momentos, porque em vez de uma, parecia estar a interpretar duas personagens. E o desafio foi tentar que parecesse só uma".
Ultrapassado o desafio, fica uma visão nova e mais empática sobre o outro. "Ensinou-me muito sobre os estilos de vida que as pessoas podem ter. Tinha noção de que há muitos adolescentes como a Caitlin, que têm de lidar com o facto de serem diferentes, mas não sabia que poderia ser tão difícil. Acho que há muitos adolescentes que poderão sentir-se menos sozinhos ao verem uma história destas e perceber que não há nada de errado com eles, com o que sentem e o que são".
O questionamento de Caitlin não ficou circunscrito à sua passagem pela série, revela ainda a atriz. "Depois disso, passei a abordar estes temas com os meus amigos, que eram pouco habituais nas nossas conversas, até porque são pouco discutidos e vistos em geral. E são ainda menos representados na televisão, sobretudo quando são vividos por personagens negras".
Além de estar a dar os primeiros passos na representação, Seamon mantém em paralelo uma carreira na música, como cantora e compositora, e editou este mês o seu primeiro álbum. Uma outra forma de expressão e de partilha. "Gosto de contar histórias sobre temas que geralmente não têm muitos palcos. Na música, gosto de explorar muitos géneros porque me revejo um pouco em cada um deles. Muita da música que criei recentemente foi inspirada pelas experiências em Itália e por ter interpretado a Caitlin durante tanto tempo. É uma personagem muito complexa, está a tentar descobrir a sua identidade e levou-me a criar um álbum chamado 'Identity Crisis', inspirado pela fluidez de género e sexualidade".
Felizmente, e tal como Fraser, Caitlin acaba por não ter de fazer a viagem de "We Are Who We Are" sozinha. E este roteiro da entrada na idade adulta poderá ser acompanhado semana a semana na HBO Portugal, todas as terças-feiras.
Teaser de "We Are Who We Are":
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