"Voltaremos a ver-nos dentro de 25 anos". Esta frase, dirigida ao agente Dale Cooper, o papel da vida de Kyle MacLachlan, encerrava "Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer", o mal amado filme de 1992 e prequela de um dos maiores cultos televisivos da década.
Antes de sagas como "Os Sopranos" e, pouco depois", "Mad Men" ou "Breaking Bad" terem ficado como jóias da coroa da chamada "idade de ouro da televisão", a partir da viragem do milénio, já a série de David Lynch e Mark Frost questionava, em 1990, os limites do meio enquanto recusava o papel de parente pobre do cinema.
Lynch, com um estatuto de culto através de filmes como "Eraserhead - No Céu Tudo É Perfeito" (1977), "O Homem Elefante" (1980) e sobretudo "Veludo Azul" (1986), não fez grandes cedências ao levar para o pequeno ecrã o misto de surrealismo, obsessão, ironia e desespero que o tornou num dos baluartes do cinema norte-americano. Frost, saído de "A Balada de Hill Street", um dos maiores (e mais elogiados) fenómenos televisivos da década de 1980, ajudou a dar alguma coesão narrativa ao universo onírico e serpenteante do companheiro de aventura, numa parceria que teve como trunfo, primeiro, e maldição, depois, a investigação da morte de uma adolescente.
Teaser da nova temporada:
"Quem matou Laura Palmer?"
A pergunta alimentou a curiosidade de muitos telespectadores da ABC, nos EUA, ou da RTP, em Portugal, em noites aguardadas, celebradas e discutidas, pelo menos durante os oito episódios da primeira temporada, apontados (de forma praticamente consensual) como o pico criativo de "Twin Peaks".
Quando a série revelou o assassino da jovem com vida dupla - a filha e estudante exemplar escondia uma prostituta viciada em cocaína -, no início da segunda temporada, os 22 capítulos que se seguiram estiveram longe de manter a alquimia do arranque mas nem por isso deixaram de ajudar ao culto.
Lynch reforçava que tinha pouco interesse em responder à pergunta, Frost insistia em fechar o arco "whodunit". A divergência originou um impasse criativo sem fim à vista, ou que afinal precisou dos tais 25 anos para sarar e voltar a despertar atenções em torno da pequena localidade do interior dos EUA - ainda com uma paisagem de árvores ao vento e a banda sonora icónica (mesmo para quem nunca viu um episódio da série) de Angelo Badalamenti.
O que foi (não) volta a ser
Entre o melodrama, o sobrenatural, o terror, o policial e pitadas de humor seco, "Twin Peaks" foi desenhando uma história elíptica e turva, com personagens excêntricas e ambivalentes, recusando os moldes mais tradicionais da narrativa mas mantendo um ritmo suficientemente intrigante.
Essa mistura difícil de rotular parece manter-se intacta nos 18 episódios da nova temporada, apresentada por Lynch como "um filme de 18 horas". O cineasta realizou todos os capítulos na primeira experiência atrás das câmaras desde "INLAND EMPIRE" (2006), uma das suas obras mais polarizantes, em parte pela duração (para muitos injustificada) de 180 minutos.
A dimensão de quebra-cabeças promete voltar a tomar conta dos acontecimentos, mesmo que o assassino de Laura Palmer já tenha sido revelado há muito. Estreados na semana passada no Showtime, nos EUA, e com direito a exibição (e ovação de pé) no Festival de Cannes, na última sexta-feira, os dois primeiros episódios têm dividido opiniões mas confirmam a singularidade do criador de "Estrada Perdida".
As primeiras reações
"Há novas personagens (incluindo, nas duas primeiras horas, alguns rostos notáveis que se estreiam na série), novas tramas e novas cidades – e na verdade não acontece muita coisa na cidade de Twin Peaks, por isso habitue-se a essa realidade", avança a crítica do IndieWire, que assume que "as peças do puzzle inspiram o êxtase".
Já a Variety defende que "a série é muito teimosamente ela mesma – não é bem cinema nem é bem televisão, rejeitando os modelos narrativos normativos. Não é particularmente divertida de ver e pode até ser perturbante. Mas nunca há uma sensação de estarmos a ver algo desprovido de uma visão ou de uma intenção".
Por cá, Nuno Markl, fã confesso de "Twin Peaks", também reagiu à nova fase na sua página do Facebook. "De novo, são dois artistas a criar algo que continua à frente do seu tempo e que de certeza irá recompensar os espectadores que alinharem na viagem com espírito mais de viajante do que de detective. Twin Peaks continua tão bom, tão misterioso, mágico, cómico que se arrisca a fazer com que outras séries boas em exibição neste momento pareçam monótonas. Isto é mesmo outra coisa", salienta.
Estreias e regressos
Com a série, regressa também a maioria dos atores das primeiras temporadas, sendo poucos os que ficam de fora - Lara Flynn Boyle ou Joan Chen estão entre estas exceções. Das novas caras, destacam-se estrelas do cinema, como Monica Bellucci, Naomi Watts, Tim Roth, Laura Dern, Michael Cera, Ashley Judd, Robert Forster ou Jim Belushi, mas também da música, caso de Trent Reznor, Eddie Vedder, Sharon Van Etten ou Sky Ferreira. E na banda sonora, além do repetente Angelo Badalamenti, há espaço para a pop eletrónica dos Chromatics ou das Au Revoir Simone, tão etérea como as atmosferas deste universo.
Ao voltar à televisão, Lynch também pode voltar a ser visto no cinema, já a partir da próxima quinta-feira, 1 de junho, com a estreia do documentário "David Lynch: The Art Life" (2016), de Rick Barnes, Jon Nguyen e Olivia Neergaard-Holm, juntamente com "Twin Peaks: The Missing Pieces" (2014) e algumas curtas metragens inéditas no circuito comercial. Mas há mais, já que "Mulholland Drive" (numa cópia restaurada em 4K) e "Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer" vão ser repostos a partir da mesma data.
Por agora, os olhares estão virados para a pequena e estranha localidade orgulhosamente igual a si própria. O fascínio ou aversão pode ser confirmado a partir deste domingo, pelas 22 horas, no TVSéries.
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